Entre a Terra e o Céu_18_Confissão
TRANSCRIÇÃO DO CAPÍTULO
Amaro, cujo semblante exibia os sinais de
renovação a que nos reportámos, comecóu a dizer, comovido:
- Sim, recordo-me perfeitamente... A
madrugada do Ano Bom de 1869 ficou marcada para sempre em nossa memória..
Abordaríamos Assunção, procedendo de Santo Antonio, em angustiosa
expectativa...
A curiosidade abafava a exaustão... Lembro-me de que,
antecedendo-se ao desembarque, Esteves oricyriy-nos solicitando-nos o concurso
fraterno para a solução de um problema que reputava importante para o futuro
que o aguardava...Éramos tres amibos inseparáveis na caserna e achávamo-nos os
três juntos... Ele, Júlio e eu... Na incerteza das ocorrências que nos
esperavam, pedia-nos, na hipótese de perecer em combate, notificar sua morte à
jovem Lina Flores, que conhecera, dias antes, em Villeta... Referiu-se,
entusiástico, ao amor que os ligava e aos projetos que formavam, considerando o
porvir... Preocupados com a aflição do companheiro, reconfortámo-lo com
palavras de compreensão e esperança, colocando-nos em guarda...
A capital
paraguaia, porém, revelava-se fatigada e desprevenida... Jamais olvidarei a
gritaria dos nossos, triunfantes, em se vendo seguros sobre a presa, criando
aflitivos problemas para as autoridades...
Revejo ainda a fisionomia risonha de
Esteves, quando se reconheceu são e salvo... Em breve, comunicava-nos o
consórcio.
Ninguém realmente podia casar-se em campanha, mas o enlace
efetuou-se às ocultas, sob a bênção de um sacerdote e com a tolerância dos
dirigentes da ocupação, atendendo-se à circunstância de que a noiva era uma
pobre menina brasileira, desde muito aprisionada...
Amaro fez pequena pausa, recobrando
energias e continuou:
- Recordo-me de que Júlio e eu fomos em
visita ao lar de Esteves, pela primeira vez, em fevereiro do mesmo ano,
contudo, colocados à frente de Lina, ambos nos sentimos incompreensivelmente
ligados àquela jovem bela e simples, cuja presença exerceu, de imediato, sobre
nós, intraduzível atração...
Guardei comigo a surpresa que me possuía, mas
Júlio, impulsivo e irrequieto, veio a mim, extravasando o coração...
A esposa
de Esteves dominara-lhe a mente, de súbito...
Se pudesse haver chegado antes do
companheiro - acentuava enamorado - não lhe cederia o lugar... Sustentava a
impressão de que Lina já lhe havia surgido em sonhos... E, desse modo, várias
vezes repetiu confidências que me tocavam as fibras mais íntimas.
Anotando-lhe o estado dalma e reconhecendo o direito de Esteves sobre a
mulher que desposara, tentei retrair-me... Calquei o sentimento e procurei o
olvido necessário...
A paixão de Júlio era demasiado forte para resignar-se.
Insinuou-se junto à recém-casada, cobriu-a de gentilezas e,
provavelmente, quem sabe? nas vicissitudes da guerra e quase criança para
guardar-se, como era preciso, nas responsabilidades do casamento, Lina
envolveu-se nas atenções do rapaz, fazendo-lhe concessões...
Recordo-me do dia
em que Esteves me procurou, desolado, comentando o golpe que recebera... Chorou
debruçado nos meus ombros. Desejava desaparecer, aniquilar-se...
Fiz-lhe
observar, porém, a inoportunidade de qualquer violência... Enfermeiro bem
conceituado e protegido do Conselheiro Silva Paranhos, nosso embaixador em missão
extraordinária, junto às Repúblicas do Prata, não lhe seria difícil a retirada
de Assunção...
Assim aconteceu. Esteves afastou-se, primeiramente
rio abaixo, na direção de Villeta, de onde havia trazido a esposa e onde se
achavam, retardados, alguns camaradas enfermos, aos quais prestaria
assistência...
Nada mais soube dele, a não ser que havia morrido misteriosamente
em Piraju...
Evidenciando enorme padecimento moral,
diante daquelas evocações, Silva estremeceu e, aproveitando o intervalo que se
fizera, bradou, agoniado:
- E a tua participação no infortúnio de
minha casa? Quem me convencerá de que também não te achavas de parceria com
Júlio, na destruição de minha felicidade? Infames!...
Clarêncio, afetuoso, acomodou o enfermeiro
irritado, recomendando-lhe esperar a narração, até o fim.
Amaro não perdera a calma.
Assinalou a objurgatória do adversário,
fixando triste sorriso, e continuou:
- Sim, minha confissão deve ser exata e
completa... Entendendo que Lina e Júlio se haviam ajustado para a vida comum,
tentei distanciar-me... Temia por mim mesmo. Lina, no entanto, como que
me registrava a inclinação imanifesta... Deitava-me olhares que me acordavam, simultaneamente,
para a alegria e para a dor. Queria aproximar-me e fugir dela, ao mesmo
tempo... A princípio, tentei evitá-la; contudo, o afastamento do Marquês
de Caxias deixava as tropas com larga provisão de tempo para diversões...
Instado talvez pela companheira, Júlio constrangia-me a frequentar-lhe a casa.
O jogo alegre e o chá saboroso reuniam-nos os três, noite a noite...
Amedrontado, ante o sentimento que a moça despertava em meu coração, não
somente porque não devia perturbar-lhe a harmonia doméstica, mas também porque
possuía uma noiva no Brasil, busquei isolar-me de novo... Reparando, todavia, o
assédio de Lina, resolvi asilar-me no trabalho mais intenso e consegui a
designação para servir na vigilância noturna do Palacete Resquin, onde a
ocupação concentrava todos os assuntos e documentos de interesse do nosso
País... Ela, entretanto, não desistiu do propósito de que se animava.
Certa noite, procurou-me, disfarçada em mulher do povo... A sós comigo,
confessou-se... Declarava-se atormentada, aflita... Sentira-se amada por
Esteves e via-se ardentemente querida por Júlio, mas não pudera interessar-se
pela felicidade junto deles, odiando-os por fim...
Amaro confiou-se a longa pausa e continuou...
- Quem poderá explicar os enigmas do
coração humano ? quem possuirá bastante visão para surpreender os caminhos da
alma ? Incapaz de dominar-me, cometi a falta de assumir um compromisso
espiritual que não me competia... Lina agarrou-se ao meu afeto com o vigor da
hera numa construção sem defesa... E foi assim que, em certa manhã de maio, meu
companheiro encontrou-nos juntos... Desesperado, Júlio ingeriu grande
quantidade de corrosivo, mas, amparado suficientemente, foi salvo... Debalde,
porém, submeteu-se ao tratamento na caserna. Adquiriu estranhos
padecimentos da garganta e do esôfago e, não sabendo como suportar as provações
físicas e morais, arrastou-se, um dia, até as águas do Paraguai, supondo
encontrar na morte a paz que procurava... Experimentando pesados remorsos, por
minha vez perdi a afeição que me algemava à mulher que nos atraíra e
infelicitara e fugi dela, fugi incorporando-me às tropas que combateriam os
derradeiros remanescentes de Solano López, na Cordilheira... Prometi-lhe
a volta, todo dia, terminada a luta, tornei à pátria por outros caminhos,
decidido a jamais reencontrá-la...
Amaro, mais comovido, passou
a destra pelo rosto e prosseguiu, depois de breve pausa:
- Dez anos correram,
apressados... Novamente no Rio, casei-me e fui feliz... Numa noite de chuva
forte, minha esposa e eu retornávamos do teatro, quando os cavalos em disparada
colheram pobre mulher embriagada na via pública... O cocheiro sofreou os
animais e desci a socorrê-la... E enquanto minha companheira continuava o
trajeto para a casa, procurei internar a mísera criatura passa a assistência
imediata... Guardas e populares auxiliaram-me a empresa, com inesquecível
assombro, quando a mulher foi recolhida ao leito, de ventre rasgado a esvair-se
em sangue, nela identifiquei Lina Flores... Por dois dias lutou contra a
morte... A infeliz reconheceu-me, relacionou as desditas que atravessara, desde
que se viu sozinha no Paraguai, esclareceu que viera ao Rio à minha
procura e emocionou-me com a narração do drama angustioso em que vivia, tentando
a recuperação da felicidade que perdera para sempre... Morreu revoltada e
sofredora, amaldiçoando o mundo e as criaturas...
Amaro interrompeu-se titubeante.
Mário Silva, estupefato, fixava-o, entre o
desespero e o pavor.
Notava-se que o ferroviário esforçava-se,
em vão, para reaver novas faixas da memória.
Nosso instrutor, contudo, afagou-lhe a
fronte, envolvendo-o em renovadas forças magnéticas, e perguntou:
- Onde voltaste a vê-la?
O interpelado esboçou o sorriso de quem
recolhera a resposta em si mesmo e informou:
- Ah! Sim... Reencontrei-a na vida
espiritual. Achava-se unida a Júlio em aflitivas condições de sofrimento
depurador... Compreendi a extensão do meu débito e prometi ressarci-lo...
Ampará-los-ia... Auxiliaria os dois na senda terrestre... Lutaríamos,
lado a lado, para conquistar a coroa da redenção... Sim, sim, o destino!... É
preciso solver os compromissos do passado, conquistando a futuro! ...
Calou-se o esposo de Zulmira, visivelmente
fatigado, mas o enfermeiro, não obstante contido pela força paternal de
Clarêncio, começou a chamar por Júlio, emitindo brados terríveis.
QUESTÕES PROPOSTAS PARA ESTUDO:
1) O que se pode deduzir da seguinte
afirmação: "(...) Incapaz de dominar-me, cometi a falta de assumir
um compromisso espiritual que não me competia..." Pode-se assumir um
compromisso que não esteja no planejamento da nossa reencarnação?
2) Teria sido possível evitar-se o
envolvimento dos personagens em questão, do modo como acontece nesta estória?
De que maneira?
3) No que difere a atitude mental dos
personagens envolvidos? Quem mostra maior entendimento das Leis Divinas?
4) Partindo-se do princípio de que as
uniões matrimoniais constam do planejamento da reencarnação de cada um, como
explicar a atração entre pessoas já comprometidas, como no caso de Júlio que
achava que "Lina já lhe havia surgido em sonhos..."? Todas as
uniões são anteriormente planejadas?
5) Explique este parágrafo: "(...)
reencontrei-a na vida espiritual. Achava-se unida a Júlio em aflitivas
condições de sofrimento depurador... Compreendi a extensão de meu débito e
prometi ressarci-lo... Ampara-los-ia... Auxiliaria os dois na senda
terrestre... Lutaríamos, lado a lado, para conquistar a coroa de redenção...Sim,
sim, o destino !... É preciso solver os compromissos do passado, conquistando o
futuro !..."
Conclusão:
Depois de ouvirem por parte de Esteves, o
atual Mário Silva, a versão dos fatos que originaram as dificuldades atuais por
que passavam, o Ministro Clarêncio deliberou que Amaro, o Armando da trama do
passado, demonstrasse como encarava a história, forçando Silva a ouvi-lo.
QUESTÕES PROPOSTAS PARA ESTUDO
1) O que se pode deduzir da seguinte
afirmação: " (...) Incapaz de dominar-me,
cometi a falta de assumir um compromisso
espiritual que não me competia..." Pode-se assumir um compromisso que não
esteja no planejamento da nossa reencarnação?
Antes de reencarnar, como ensinam os
Espíritos, é feito um planejamento reencarnatório, que pautará os principais
acontecimentos da nova experiência terrena do reencarnante. São definidas as
provas necessárias ao seu progresso, a família e o meio no qual renascerá.
Todavia, o espírito não se torna um autômato, amarrado a um script do qual não pode
se livrar. Ao contrário, continua ele detentor de seu livre-arbítrio, do qual
jamais é despojado, pois inerente à sua condição de ser inteligente da Criação.
Sendo assim, o cumprimento ou não do planejamento
elaborado para a reencarnação, no plano espiritual, com
exceção das provas a que terá de se submeter, independentemente
de sua vontade, dependerá sempre do espírito reencarnante, ao usar
seu livre-arbítrio.
No trecho acima citado, a personagem em
questão - Amaro - reconhece que se envolveu numa trama para a qual não estava
programado. Os espíritos fazem suas evoluções em grupos afins, reajustando-se
uns com os outros, devedores mútuos. Amaro nada tinha a ver com aqueles
espíritos. Ao estabelecer uma relação amorosa com Lina, traindo
a confiança do amigo Julio, Amaro criou entre os três um vínculo
espiritual eivado de ódio, mágoa e ressentimentos, a exigir o
devido reajuste. Ou seja, deixando-se levar por uma atração física momentânea, como
ele próprio afirmou, assumiu um compromisso espiritual que não lhe
competia, que poderia ser evitado, atrasando o seu adiantamento.
2) Teria sido possível evitar-se o
envolvimento das personagens em questão, do modo como acontece nesta história?
De que maneira?
Como vimos, o envolvimento entre essas
personagens deveu-se ao uso equivocado que fizeram de seus livre-arbítrio.
Estamos vendo que houve uma série de
traições seguidas. Ninguém reencarna para isso. A traição não faz parte dos
compromissos reencarnatórios de ninguém. Se as personagens se envolveram
dessa maneira condenável, criando entre elas vínculos
espirituais negativos, deve-se, tão somente, a elas próprias. É claro que essa
situação poderia ter sido evitada, se não agissem da maneira como o fizeram,
movidas por sentimentos unicamente relativos à matéria e pouco nobres.
3) No que difere a atitude mental dos
personagens envolvidos?
Quem mostra maior entendimento das Leis
Divinas?
Estamos diante de espíritos com grandes
dificuldades, cada um se encontrando numa situação psíquica
diferente.
Júlio encontra-se na erraticidade,
submetendo-se a tratamento espiritual para readquirir equilíbrio e, então, começar
a se preparar para uma nova oportunidade reencarnatória. Os outros três
participantes do drama estão encarnados, porém em condições diversas.
Mário Silva, o Esteves de ontem, ainda
se mantém preso aos acontecimentos pretéritos.
Demonstra esta ainda dominado pelo ódio e ressentimento, desejando vingança
contra os que considera seus desafetos. Lina, hoje Zulmira,
embora sem demonstrar os mesmos sentimentos de Esteves, também ainda não despertou
para a necessidade de se sintonizar com as leis divinas. Facilitou a
desencarnação do pequeno Júlio, por quem nutria ciúme, devido ao amor que Amaro lhe dedicava.
Hoje, passa pelo sofrimento
reparador, fortemente obsidiada pela ex-esposa de Amaro. Este, o
Armando dos acontecimentos do passado que geraram a atual situação, já não
nutre os mesmos sentimentos pouco elevados dos outros dois. Reconhece os erros
do passado e, entendendo a necessidade do reajuste, busca a reparação.
Demonstra indulgência para com o desafeto de ontem, que o agride impiedosamente,
como vimos nesse capítulo. É, sem dúvida, quem mostra melhor entendimento das
Leis de Deus e quem mais se adiantou depois do ocorrido na existência física
anterior.
4) Partindo-se do princípio de que as
uniões matrimoniais constam do planejamento da reencarnação de cada
um, como explicar a atração entre pessoas já comprometidas, como no caso
de Júlio, que achava que " Lina já lhe havia surgido em sonhos..."?
Todas as uniões são anteriormente planejadas ?
Na maioria das vezes, sim. Porém, nem todas
o são. Muitas uniões matrimoniais se dão na Terra sem que tenha havido
qualquer planejamento no mundo espiritual. São uniões acidentais, resultantes
do encontro de espíritos ainda em níveis evolutivos inferiores, que se atraem
por atração momentânea, geralmente motivadas pelo corpo físico, sem qualquer
ascendente espiritual. Isso é comum num planeta como esse em que estamos
reencarnados, de expiações e provas. São espíritos que se encontram e que
sentem, um pelo outro, uma atração física, um sentimento baseado unicamente na
matéria. Constituem uma união de corpos, sem qualquer vínculo
pelo verdadeiro amor, que é o
espiritual. Nesses casos, nenhum
compromisso prévio houve, tendo funcionado, no caso, tão somente, o
livre-arbítrio de ambos.
5) Explique este parágrafo: " (...)
reencontrei-a na vida espiritual.
Achava-se unida a Júlio em aflitivas condições de
sofrimento depurador... Compreendi a extensão de meu débito e prometi
ressarci-lo... Ampara-los-ia... Auxiliaria os dois na senda terrestre....
Lutaríamos, lado a lado, para conquistar a coroa de redenção... Sim, sim,
o destino!...
É preciso solver os compromissos do
passado, conquistando o futuro!..."
Amaro recordava o compromisso assumido, no
plano espiritual, de se unirem em matrimônio ele e Lina, para, juntos, receberem
Julio como filho. Constituída a família, procederiam ao necessário reajuste
entre os três, resgatando-se, mutuamente, os débitos que contraíram
no passado. Sem que venhamos a nos redimir dos nossos desajustes, nossa evolução
fica paralisada. Para conquistarmos o futuro, necessário é resgatar os compromissos
do passado, como bem acentuou o instrutor Clarêncio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário