Entre a
Terra e o Céu_36_Corações renovados
Três dias haviam corrido sobre a libertação
de Júlio.
De novo, ao lado de Zulmira, nas primeiras
horas da noite, reparávamos lhe a profunda exaustão...
O enfraquecimento progressivo impusera lhe
perigosa situação orgânica.
O próprio Clarêncio, depois de auscultá-la, anotou
apreensivo
- Nossa
irmã reclama socorro mais seguro. O esgotamento é quase completo.
A enferma recebia lhe a assistência
magnética, quando Mário, Antonina e Haroldo deram entrada em sala próxima.
Deixamos nosso instrutor com a doente e demandamos
a peça em que se efetuaria o encontro familiar.
O ferroviário e a filha faziam as honras da
casa.
Amaro, acolhedor, dava mostras de grande alivio.
O sorriso, embora triste, era largo e espontâneo, demonstrando o contentamento
interior de quem via terminar velha e desagradável desavença.
Mário, porém, surgia constrangido e
desajeitado, enquanto Antonina irradiava simpatia e bondade, cativando, de
improviso, a amizade dos anfitriões.
O enfermeiro apresentou a jovem senhora e o
filhinho por amigos particulares e depois, evidentemente instruído pela
companheira, iniciou a palestra, comentando a penosa impressão que lhe causara
o falecimento do pequenino e pedia escusas por não haver reaparecido, como
reconhecia de seu dever.
A ocorrência desnorteara o.
Caíra de cama, impressionado com o
acontecimento que lhe não cabia esperar.
Falava realmente comovido, porque, lembrando
os derradeiros minutos da criança, represavam se lhe os olhos de lágrimas que
não chegavam a cair.
Aquela emotividade manifesta, aliada à
humildade sincera que Silva deixava transparecer, tocava o coração de Amaro,
que se descerrou mais amplamente.
Percebi disse o dono da casa a
dor que o envolveu no momento justo em que nosso anjinho era arrebatado pela
morte. Sua aflição me comoveu muito, não só pelo devotamento do profissional
que nos assistia, mas também pela afetividade pura do amigo que, há tanto tempo,
se distanciara de nossos olhos.
A generosidade do ex-rival, por sua vez,
influenciava o enfermeiro de modo decisivo.
As vibrações de afabilidade e carinho que se
desprendiam do apontamento afetuoso
modificavam lhe o íntimo.
Mário passou a sentir balsamizante desafogo.
E, enquanto Evelina se afastava para atender
à madrasta doente, reportou se à tortura moral que o assaltara, assim que viu
Júlio inerte, detendo se na breve descrição do complexo de culpa que o acometera.
Teria seguido com segurança a indicação do especialista?
Enganar se ia, porventura, na dosagem da
medicação?
Na ligeira pausa que surgiu, natural, Amaro
tornou à palavra, acrescentando, bondoso:
Não havia motivo para tamanha
preocupação. Desde a primeira visita médica, compreendi que o nosso filhinho
estava condenado. O soro foi o último recurso.
E, com dolorida resignação, acentuou:
Não é a primeira vez que atravesso uma
provação dessa ordem. Há tempos, sofri a perda do caçula de meu primeiro
matrimônio, estranhamente afogado numa de nossas raras excursões até à praia.
Confesso que só me faltou enlouquecer. Entretanto, apeguei me à religião para
não soçobrar e hoje compreendo que somente nos compete acatar os desígnios de
Deus. Não passamos de criaturas necessitadas de socorro divino, a cada instante
de nossa experiência humana.
Sem dúvida interferiu Antonina,
otimista , sem apoio espiritual, não avançaríamos um passo no terreno da
verdadeira harmonia íntima. A morte do corpo nem sempre é o pior que nos possa
acontecer. Quantas vezes os pais são constrangidos a acompanhar a morte moral
dos filhos, no crime ou na viciação que não conseguem interromper? Também perdi
um dos rebentos que Deus me confiou, mas procurei acomodar-me à saudade sem
revolta, porque a Sabedoria do Senhor não deve ser menosprezada.
Que prazer ouvi-Ia! Disse o
ferroviário, com discreta satisfação após afeiçoar-me, com mais empenho, ao
Catolicismo, na leitura de Santo Agostinho, observo que abençoada renovação se fez
em mim.
E fitando a interlocutora, com mais atenção,
aduziu - A senhora é também católica?
Antonina sorriu delicada, e informou:
Não, senhor Amaro, em matéria de fé,
aceito a interpretação evangélica do Espiritismo, entretanto, isso não impede
que estejamos procurando o mesmo Mestre.
Ah! Sim, Jesus é o nosso porto acentuou
o anfitrião, liberal, não entendo a religião por elemento separatista. A
senhora, na condição de espírita, e eu, na posição de católico, possuímos uma
só linguagem na fé que nos identifica. Creio que a Providência Divina, como o
Sol, brilha para todos.
É muita alegria sentir lhe a nobreza d’alma
comentou Antonina, entusiástica; na essência, desejamos ser cristãos sinceros e
a sua generosidade me permite entrever a beleza do Cristo nas vidas nobres.
Amaro não conseguiu responder.
Um táxi parou à porta e, de imediato, o
médico da família entrou para a inspeção.
Depois das saudações usuais, passou ao quarto
da enferma e, porque o dono da casa se propusesse segui-lo, recomendou lhe
permanecesse na sala com as visitas, de vez que tencionava submeter a doente a meticuloso
exame, pretendendo ouvi Ia a sós.
Evelina veio ter conosco e, acompanhando o
facultativo com o nosso olhar, vimo-lo carinhosamente recebido por Clarêncio e
Odila, que se nos mostraram à porta.
A conversação passou a desdobrar se em torno
de Zulmira.
O chefe da família, preocupado, discorria
sobre a esposa acamada, encarecendo a delicadeza da situação.
Zulmira, que adoecera com a enfermidade do
filhinho, desde a morte dele, não mais se alimentara.
Não obstante todos os conselhos médicos e
todos os apelos afetivos, demonstrava se alheia, no mais amplo desinteresse
pela vida.
Enfraquecia, de modo alarmante.
Como se quisesse dar notícias de seu círculo
particular ao atento enfermeiro, relacionou os desajustes psíquicos da
companheira, antes da vinda do filhinho que a morte lhes arrebatara ao
convívio.
Zulmira, com a maternidade triunfante, como
que se renovara.
Revelara se mais alegre mais viva.
Readquirira
a saúde plena.
Com a desencarnação da criança, nova crise de
contratempos invadira-lhe a casa.
A moléstia asilara se, ali, de novo, entre as
quatro paredes.
Mário, a permutar significativos olhares com
Antonina, de quando em quando se situava entre a perplexidade e o desencanto.
A confissão de Amaro constituía um testemunho
de humildade pura.
Em muitas ocasiões, fantasiara o, na própria
imaginação, qual se fora um poço de orgulho e arrogância e, por muitas vezes,
surpreendera se em acalorados solilóquios, rixando com ele em pensamento.
Agora, reparava que o antagonista era um
homem comum, tanto quanto ele necessitado de paz e compreensão.
O entendimento prosseguia mais afetuoso,
quando o clínico tornou à sala.
De semblante torturado, dirigiu se ao
ferroviário, notificando:
Amaro, a providência é quase
impossível quando a previdência não funciona. A posição de Zulmira piorou
muitíssimo nas últimas horas. O soro aplicado desde ontem não trouxe o
resultado preciso. O abatimento é enorme. Creio indispensável uma transfusão de
sangue ainda esta noite. Para que não sejamos amanhã surpreendidos por
obstáculos insuperáveis.
Amaro empalideceu.
Antonina voltou se em silêncio para Silva,
como a dizer lhe, de coração para coração: - Não hesite. E a sua hora de
ajudar. Aproveite a oportunidade. - Mário, acanhado, levantou se maquinalmente
e, antes que Amaro fizesse qualquer referência ao assunto, apresentou se ao
médico, explicando:
Doutor, se a minha cooperação for
aceita, sentirei prazer nisso. Sou doador de sangue no hospital em que trabalho.
Um telefonema seu ao pediatra amigo, a quem o senhor recorreu no caso de Júlio,
pode confirmar as minhas palavras.
E, erguendo os olhos para o ex rival, disse,
em voz quase suplicante:
Amaro permita-me! Quero auxiliar a
doente de algum modo!... Afinal de contas, somos todos, agora, bons irmãos.
O chefe da casa, comovido, abraçou o
reconhecidamente.
Obrigado, Silva!
Nada mais conseguiu dizer.
De olhos angustiados, dirigiu se para o aposento
da mulher, envolvendo a em manifestações de carinho.
Antonina, colocando Haroldo junto a uma pilha
de revistas velhas, pôs se à disposição de Evelina para qualquer atividade
caseira, enquanto Mário e o médico partiam velozes, em busca do material necessário.
Transcorrida uma hora, a câmara da enferma se
iluminava mais intensamente para o serviço a fazer.
Zulmira, admirada, reconheceu Mário, todavia
era enorme a prostração para que pudesse demonstrar interesse ou desprazer.
Apresentada a Antonina, limitou se a endereçar lhe alguns monossílabos, com um
breve sorriso de reconhecimento.
Assumindo a direção da enfermagem, a jovem
viúva parecia uma figura providencial.
Amparou a doente com carinho, auxiliou o
clinico nas tarefas do momento e, cativando a gratidão dos novos amigos,
colaborou com Evelina para que todas as medidas alusivas à higiene se
efetuassem harmoniosas.
Realizada a transfusão, a enferma entrou na
reação característica, contudo, Silva, fosse porque estivesse de si mesmo
enfraquecido ou porque a quantidade de sangue tivesse sido demasiada, passou a
acusar profundo abatimento.
Em seus olhos, porém, brilhava uma luz
diferente.
Afigurava se lhe haver perdido as
inquietações que o martirizavam.
Adquirira a noção de que se reabilitara,
perante a própria consciência.
Trouxera aos ex-adversários o próprio coração
em forma de visita fraterna. E as suas próprias forças insufladas no campo
orgânico da mulher que lhe fora a bem amada, como que lhe favoreciam a ausência
dos velhos pensamentos de mágoa que, por tanto tempo, lhe haviam flagelado a
vida íntima.
Registrando lhe a queda de energias, o médico
ministrou lhe, de imediato, os recursos aconselháveis, permanecendo Mário,
desse modo, comodamente instalado em larga poltrona, junto dos amigos.
Despediu se o facultativo, mais animado.
Antonina, sem afetação, ajudou no preparo do
café, que foi saboreado por todos, enquanto a conversação era reatada com
alegria.
Foi então que a viúva se ofereceu para voltar.
Era industriária e, na posição de mãe,
responsabilizava se por três crianças, entretanto, poderia dispor de dois dias.
Amaro salientou a dificuldade para encontrar
uma enfermeira ou governanta para horas difíceis e aceitou a gentileza.
Antonina, contente, prometeu regressar,
trazendo Lisbela, na manhã seguinte. Estava convencida de que a menina
conseguiria entreter Zulmira, com as suas infantilidades, mitigando lhe o
coração saudoso de mãe.
Evelina abraçou a, encantada. Simpatizara se
com Antonina, como se fossem duas irmãs.
Algo reanimado e positivamente feliz, Mário
dispôs se à retirada e um táxi foi trazido.
Num ambiente de construtiva cordialidade,
desenvolveu se a reconfortante despedida.
E Silva, fitando a companheira de excursão
com reconhecimento e carinho, sentiu se reconciliado consigo mesmo, irradiando
a alegria silenciosa de quem retorna à felicidade.
Questões para estudo:
1) No trecho: - Entretanto, apeguei-me à
religião para não soçobrar e hoje compreendo que somente nos compete acatar os
desígnios de Deus -, podemos dissertar sobre o caráter de _Consolador
Prometido_ do Espiritismo. De que forma você acha que o Espiritismo consola?
2) Comente o trecho: _A morte do corpo nem
sempre é o pior que nos possa acontecer._.
3) No trecho _- Ah! Sim, Jesus é o nosso
porto _ acentuou o anfitrião liberal -, não entendo a religião por elemento separatista,
subentende-se o verdadeiro da caráter de ser religioso.
a. Como devemos agir perante outras religiões
diferentes da nossa?
b. Em nosso atual estágio evolutivo as
diversas religiões são necessárias. Você concorda? Por que?
c. Essa diversidade de religiões será eterna?
Por que?
4) Apesar da morte do filho, Zulmira se
entregou à doença de forma intensa. Como poderia ter agido para não se afetar
tanto?
5) Toda a _tortura moral_ de Mário impeliu-o
a se retratar de alguma forma, fazendo com que _se rompesse_ elos do carma,
herdados no pretérito. De que forma devemos agir perante aqueles que
prejudicamos (inimigos ou não) para que possamos nos ver livres das _amarras do
carma_ ?
Conclusão:
1) No trecho: "Entretanto, apeguei-me à
religião para não soçobrar e hoje compreendo que somente nos compete acatar os
desígnios de Deus", podemos dissertar sobre o caráter de Consolador
Prometido do Espiritismo. De que forma você acha que o Espiritismo consola?
Conforme o relato do evangelista João, Jesus,
em sua passagem pela carne, prometeu um outro consolador, que viria
ensinar todas as coisas e relembrar o que o Cristo havia dito. Assim, o
Espiritismo veio na época predita, cumprindo a promessa de Jesus, que presidiu
pessoalmente a sua revelação. Consola porque esclarece. Mostra a causa e o
objetivo dos sofrimentos. Através de seus ensinamentos, o homem compreende a
dor e a aceita sem revolta, porque sabe que ela lhe auxiliará em seu
adiantamento. O Espiritismo lhe dá a fé raciocinada, inabalável e a certeza da
felicidade futura.
Como define Kardec, no capítulo VI de "O
Evangelho segundo o Espiritismo":
"Assim, o Espiritismo realiza o que
Jesus disse do Consolador prometido: conhecimento das coisas, fazendo que o
homem saiba donde vem, para onde vai e por que está na Terra; atrai para os
verdadeiros princípios da lei de Deus e consola pela fé e pela esperança."
2) Comente
o trecho: "A morte do corpo nem sempre é o pior que nos possa
acontecer."
Antonina tentava confortar Amaro, reafirmando-lhe
o ensinamento espírita sobre o fenômeno da morte do corpo físico.
Como afirmou, mesmo sob a ótica puramente
terrena, há situações em que o sofrimento por elas gerados é bem mais penoso do
que o causado pela morte física: é quando um pai testemunha a morte moral de um
filho, através do crime ou da viciação. A morte física é uma circunstância
natural e, cientes de que a Sabedoria Divina é muito maior que a nossa,
temos de aceitá-la como sendo uma necessidade para o espírito desencarnante.
3) No trecho "- Ah! sim, Jesus é o nosso
porto, acentuou o anfitrião liberal, não entendo a religião por elemento
separatista", subentende-se o verdadeiro da caráter de ser
religioso."
a. Como devemos agir perante outras
religiões diferentes da nossa?
Ë preciso que entendamos que cada um se
encontra num momento evolutivo diferente. As várias religiões existentes se fundam
em interpretações diferentes da nossa realidade existencial, conforme o grau
evolutivo de seus formuladores. É, indispensável, portanto, que aceitemos a
capacidade de entendimento de cada um. Os fundamentalismos, hoje
ainda vivos em todo o mundo, devem ser repelidos pelos homens de bem,
respeitando-se o direito à liberdade de opção e à convivência
fraterna e civilizada entre os profitentes de todos os credos ou os que não
professam credo algum.
b. Em nosso atual estágio evolutivo, as
diversas religiões são necessárias. Você concorda? Por quê?
Não diríamos necessárias, mas compreensíveis.
As religiões mais separam do que agregam; mais dividem do que unem.
No entanto, temos de aceitá-las, ante o momento evolutivo em que nos
encontramos. O homem ainda precisa temer alguma coisa, como forma
de impor algum limite ao seu orgulho e ao seu egoísmo. Dia virá, porém, em que a
previsão de Jesus se cumprirá e haverá um só rebanho e um só pastor. O
Espiritismo, demonstrando a realidade da nossa existência,
dá-nos a consciência de que somos os únicos responsáveis pelo nosso futuro
e dispensa-nos da prática de religiões formais. Segundo os
Espíritos responderam a Kardec, tornar-se-á crença geral e marcará uma nova era
na história da humanidade, porque está na sua natureza.
c. Essa diversidade de religiões será
eterna? Por quê?
Como dissemos, Jesus previu um só rebanho e
um só pastor e o Espiritismo se tornará crença geral. Isso não significa, contudo,
que absorverá todas as religiões formais. Seus princípios é que serão
absorvidos pelas religiões e estas perderão o seu poder
divisionista. Mas isso somente será possível quando a humanidade estiver
moralizada, praticando o ensinamento moral do Cristo em toda a sua plenitude.
Esse ensinamento é um só. Porém, é interpretado de múltiplas maneiras e, até,
rejeitado por outros. Quando todos tiverem atingido a qualidade de puros
espíritos, os homens entenderão os ensinos do Cristo de uma mesma maneira e não
mais haverá divergências religiosas.
4) Apesar da morte do filho, Zulmira se
entregou à doença de forma intensa. Como poderia ter agido para não se afetar tanto?
Zulmira poderia ter reagido de forma
diferente, aceitando os desígnios da Providência. Porém, não tinha compreensão das
leis naturais e não aceitou o fato como uma necessidade evolutiva de todos. Deixando-se
dominar por sentimentos malsãos, seu perispírito foi lesionado e as energias
negativas emanadas por esses sentimentos somatizadas em seu corpo físico,
levando-a à enfermidade.
5) Toda a "tortura moral" de Mário
impeliu-o a se retratar de alguma forma, fazendo com que se
rompessem elos do carma, herdados no pretérito. De que forma
devemos agir perante aqueles que prejudicamos (inimigos ou não) para que possamos
nos ver livres das amarras do carma?
"Tendo antes de tudo ardente amor uns
para com os outros, porque o amor cobre uma multidão de pecados; sendo
hospitaleiros uns para com os outros, sem murmuração; servindo uns aos outros
conforme o dom que cada um recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça
de Deus."
(I Pedro,
4. 8-10)
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