José Rodrigues (*)
Por cima uma laje/ Embaixo a escuridão/ É
fogo irmão!/ É fogo irmão!
(Testamento - Vinícius de Moraes e Toquinho)
Crises sistêmicas da economia mundial refletem formas
de ação individual e coletiva que não deixam dúvida sobre suas causas: a
ambição.
Enquanto uma expressão exagerada da paixão, a ambição,
como fator psicológico, não é considerada nas avaliações e previsões dos
agentes econômicos, centradas em dados de predomínio quantitativo.
O espiritismo, em sua expressão filosófica, ao tratar
das causas dos conflitos humanos, oferece elementos capazes de elucidar e
ajudar a superação das crises, pela mudança de seus antecedentes.
O presente trabalho analisa o tema apoiado nos
fundamentos éticos e morais do espiritismo, que têm vasto campo para crescer
nas relações humanas, entre as quais as econômicas e, nestas, as financeiras.
Aqui está o eixo das crises que têm abalado o mundo dos negócios, com
repercussões sociais graves e injustas.
* * * * *
A mais vergonhosa contradição dos tempos recentes, em
escala mundial, mantém suas chagas abertas. Ao tempo em que a maioria dos
bancos centrais presta socorro ao setor financeiro — em seis meses o governo
dos Estados Unidos, mais o Federal Reserve Board transferiram ao setor privado
cerca de US$ 2 trilhões — a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e
Agricultura (FAO na sigla em inglês) denuncia que em 2009 o número de pobres e
famintos no mundo cresceu 100 milhões de pessoas, para 1,02 bilhão. Equivale a
um sexto da população global.1
O emprego é outra vítima do sistema. Em 2009, segundo a
Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre 210 milhões e 239 milhões de
pessoas estariam desempregadas, respectivamente, com aumentos equivalentes a
6,5% e 7,4%, sobre níveis de 2007. Significa que de 39 milhões a 59 milhões de
pessoas passam a engrossar a estatística dos desocupados no mundo. A entidade deixa
claro que esse quadro negativo deriva da mais recente crise econômica mundial.
Está-se ante um fenômeno sistêmico da economia,
institucionalizado pela omissão de dados reais de seus atores, mentiras,
leniência, cumplicidade, práticas de altíssimos salários e prêmios a gestores,
favorecedoras de subterfúgios, espertezas, prejuízos, instabilidades e
incertezas, com o desaguar no desemprego e no aumento da pobreza. O fenômeno,
que não pode ser atribuído ao acaso, muito menos a forças da natureza, persiste
como a ludibriar os avaliadores de riscos, grandes instituições especializadas
no ramo, com a aparente função de distinguir empresas e países com maior ou
menor segurança para parcerias.
Esses efeitos passam batido na legislação reguladora
dos países e da auditoria dos bancos, que têm deveres de proteção para com o
público, pelas funções também públicas que desempenham.
A economia clássica, ao julgar-se uma ciência exata,
procura dimensionar tendências por dados quantitativos, no que é desmentida
pelos fatos. Inexiste, na ciência econômica, um indicador de limites para
ofertas e demandas, ou seja, até que ponto um fenômeno passa do necessário ao
especulativo, do útil à ambição. O desfecho desse processo costuma ser penoso,
por contrariar leis naturais, escapáveis a um setor que se propõe a ser
científico, mas cujo comportamento vislumbra a crença.
Haveria como um torpor generalizado nos agentes do
mercado, sob uma falsa hipótese de que demandas e preços podem subir
indefinidamente. Seria esse torpor, um sentimento natural, ou adquirido nas
práticas do mercado? Quais fatores
compõem a decisão de cada um, ante o presente e o futuro?
O elemento faltante desse universo é o psicológico, em
linguagem ampla, ou espiritual, mais profundo e adequado. Seu significado
repercute de forma direta nos rumos da economia e da sociedade, a merecer uma
avaliação na medida de sua importância humana e social.
A matéria-prima agora são itens como ambição, paixão,
egoísmo, vaidade, poder, sexo, vontade de empreender, à conta de motivações do
ser humano. Regulações em diferentes setores da economia, se frouxas, de pouca
transparência, podem respaldar aquelas forças do ser, com favorecimento às
crises.
A literatura econômica apenas resvala nesses
componentes psicológicos mas, com a crise aprofundada entre 2007 e 2009, há uma
renascente preocupação de colocá-los à mesa das análises, entre diagnósticos e
perspectivas. Sob o ponto de vista espírita, admitindo-se que ambição, paixão e
outros comportamentos estimuladores de decisões refletem uma estrutura mental
egoísta e materialista, ainda que dentro de um amplo espectro de manifestações,
propõe-se a questão:
Uma visão imortalista e palingenésica da existência
terá força para alterar os fundamentos do homem e estabelecer relações mais
justas e estáveis na economia e na sociedade?
Desde David Hume (1711-1776) e Adam Smith (1723-1790),
ambos escoceses e iluministas, até John Maynard Keynes (1883-1946), também
britânico, há argumentações sobre a importância de fatores psicológicos na
economia. Mais recentemente, dois economistas norte-americanos, Robert Shiller,
da Universidade de Yale e George Arkelof, da Universidade da Califórnia, este
Nobel de Economia/2001, reativaram o conceito de “espírito animal”, como
componente e acionador de decisões humanas, com repercussões na economia.
Shiller e Arkelof escreveram o – Animal Spirits – com o desafiador subtítulo “Como a psicologia humana comanda a economia e porque ela é importante para o
capitalismo global”. Convicto de suas análises, Shiller, afirma que “Uma
noção importante para a teoria econômica convencional é a ideia de que as
pessoas são inexoravelmente egoístas, capazes de desrespeitar as leis e fazer
qualquer coisa para maximizar seus lucros. Tem algo errado aí.”2
A temática cresce de importância com a mais recente
crise, marcada pela quebra de históricas instituições financeiras dos Estados
Unidos, detentoras dos títulos ‘podres’, os ‘subprimes’ e altamente expostas no
conceito financeiro. O abalo maior ocorreu em setembro de 2008, com o pedido de
concordata do Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimentos dos
Estados Unidos, fundado em 1850 por três judeus imigrantes da Alemanha.
De fato, tanto a economia norte-americana, como de
vários outros países de maior renda, encontravam-se altamente “alavancadas”, no
jargão econômico, sinônimo de elevado endividamento em relação às suas receitas
líquidas.
O fator eminentemente financeiro, que sempre supõe
maior exposição a riscos, expandiu-se nas operações entre empresas e destas
para o público, em montantes desproporcionais à economia real, a indicar ampla
aposta no futuro. Esse mecanismo de criação de ‘bolhas’ repete-se ao longo da
história, infladas, na sua mais recente versão, pelo setor imobiliário, com
estímulo dos bancos, sob a falsa hipótese de ganhos contínuos e ilimitados.
Ponho em alta dúvida ética o mandamento capitalista da
alavancagem, nos últimos tempos eleita como essencial nas iniciativas
comerciais e de investimentos. Empresas muito alavancadas são aquelas que
assumem elevados compromissos, ante suas reais disponibilidades em ativos e
obtenção de receitas.
A estratégia é de operar com recursos de terceiros, bem
acima dos próprios.
Uma complacência generalizada de fornecedores de
recursos financeiros e de órgãos incumbidos de fiscalizar operações do tipo,
convalidam a eleição do alto risco como algo normal. Legaliza-se, assim, o que mais
à frente redundará em inadimplência, quebra de compromissos e tentativa de
repasses de prejuízos.
E imaginar-se que tudo começou com o escambo! Trocar
bens produzidos entre si, ou bens por serviços, marca o início das transações
nas tribos. Sem moeda propriamente dita, o homem-agrícola buscava a simples sobrevivência, até que a produtividade criou o
excesso de produção e abriu o caminho para a mercadoria, o bem levado ao
mercado.
Não se pode negar que a transformação das primeiras
moedas, como o gado e o sal, em moedas cunhadas, representaram um avanço na
praticidade dos negócios.
Mas as moedas também não seriam imunes às artimanhas do
homem: tanto podiam ser falsificadas, como até hoje, quanto não representar o
valor de face.
Ou seja, da moeda cunhada em ouro ou prata, passou-se
para o cobre ou ligas metálicas diversas, ao tempo em que os valores inscritos
nas cédulas não possuíam o respaldo em ouro. As cédulas careciam de lastro ou
conversibilidade.
Observa-se ao longo da história que o ser humano tem
sido ávido por ‘criar’ moeda, tarefa exclusiva do poder público. Essa avidez
foi sempre perseguida pelo setor bancário, ao praticar empréstimos e cobrar
juros. A pessoa que se endivida além de uma proporção razoável, ante sua
possibilidade de gerar renda própria, acredita no mesmo princípio dos bancos.
Essa distorção tomou dimensões gigantescas com a
liberalidade financeira. O saque contra o futuro passou à condição de norma,
tanto que em nenhum momento da história, como no presente, se exaltou com tal
grandiloqüência a utilidade do crédito. Sua escassez, com a quebra de confiança
do mercado,
foi tida como catastrófica para os negócios.
Na economia norte-americana, que dita comportamentos
mundiais, os exemplos de alavancagem denunciam extremada ambição, como se
conclui destes números. Entre 1976 e 2008 o endividamento do setor privado
cresceu de 112% para 295% do PIB dos Estados Unidos. Nesse meio, o setor
financeiro saltou de 16% do PIB para 121%.3 Significa que a economia baseada
em crédito e, não raro virtual, supera em larga medida a real, o que supõe
altíssima exposição a riscos, na verdade, uma tendência de difícil reversão sem
quebras no caminho.
Por detrás dessa e de outras crises, como a de 1929,
detonada pela quebra da Bolsa de Nova York, que gerou a Grande Depressão, está
o ser humano, em sua complexidade corpo e espírito. É esse ser que nos momentos
de confiança dispara tendências para um lado, o do consumo e do investimento,
para em seguida tomar o rumo inverso, encolhendo-se, quando há desconfiança,
agora com geração de instabilidades e perdas para pessoas e mercados.
A sequência desse quadro vem pela corrida dos sistemas
em aperfeiçoar suas regulações, não sem antes necessitar de socorro de recursos
públicos, em escandaloso expediente socializante. Foi chocante a notícia segundo
a qual executivos de um grupo econômico prestes a quebrar viajou de avião
fretado para Washington a fim de darem explicações sobre motivos da aventura
com o dinheiro de seus clientes.
A dúvida que cerca estas questões tem razões práticas.
O pressuposto da unicidade da existência, a oportunidade de desfrute dos
prazeres materiais, o sentimento de ser melhor do que os outros, favoreceria o ímpeto
criativo das pessoas e estaria na base do interesse de empreender.
De outra parte, a certeza da imortalidade e a
sobrevalorização da vida espiritual levariam o homem a um estado contemplativo,
travado ante a criatividade, a produção de bens que a sociedade consome. Surge
uma dúvida: abrir-mão de satisfações agora, para melhor colheita no mais além,
conduziria a uma estagnação da sociedade, em seus diversos campos de
manifestação? O Espírito Pascal,4 ao comunicar-se em Genebra, 1860,
foi desafiador e categórico:
“O homem não possui senão aquilo que pode levar deste
mundo”.
Humberto Mariotti5 receia o que chama de o
homem-finito, sinalizador de “catástrofes espirituais”. O pensador espírita
argentino faz esta reflexão: “Se o homem continuasse pensando em sua própria
finitude, não há dúvida de que a civilização terminaria na mais terrível das
catástrofes espirituais. Porque, se o homem-que-morre é quem deve reger o
desenvolvimento humano, tudo será relativo e tenderá a malograr com a ideia do
nada. Não haverá nenhum valor espiritual que se salve da morte definitiva. O
homem finito, com seus afetos e aspirações, resultará em tragédia e fatalidade”.
David Hume, em seu Tratado na Natureza Humana, citado por Eduardo Gianetti da Fonseca,6 afirma que “há três classes de bens que os agentes podem perseguir
e que se tornam objetos de suas atividades autointeressadas:
(I) a satisfação interna de nossa mente (bens da
mente);
(II) as vantagens externas de nosso corpo como, por
exemplo, desfrutar a saúde, o sexo e a boa aparência (bens do corpo); e
(III) o desfrute das posses que adquirimos por nossa
própria indústria e boa sorte (bens externos)”.
Para Fonseca, a teoria smithiana “é uma tentativa de
explicar a primazia relativa de (III), ‘o desfrute das posses’, na sociedade
moderna...”.
Adam Smith tenta formular na Teoria dos Sentimentos Morais, a natureza da ambição econômica. Ele questiona o
porquê de tantos caminhos pedregosos para o homem que pratica a avareza, por
exemplo, na busca de riqueza, do poder e da preeminência.
Significa admitir-se que tanto a mais recente, quanto
as anteriores ou posteriores crises na economia, derivam da mesma cultura desse
homem-histórico. A amostragem internacional que se seguiu ao noticiário dos
últimos tempos, de vilania, procura do ganho fácil, crimes financeiros declarados
ou encobertos, oferece a medida de que o homem, em visão genérica, tem dado
passos bem curtos na direção do respeito ao próximo, à valorização do trabalho pessoal e ao próprio
crescimento espiritual.
Cabe, assim, uma avaliação dos sistemas econômicos que
têm prevalecido contemporaneamente.
De fato, o capitalismo, desde a Revolução Industrial
(Século 18) obteve amplo crescimento mundial, baseado na liberdade de empreender,
respeito à propriedade individual e acumulação de resultados. Por sua vez, a
Revolução Bolchevique (1917), de inspiração comunista, que perdurou por quase
70 anos, elegeu o Estado como principal agente da economia. Mas esse modelo não
se sustentou. Após a queda do Muro de Berlim (1989) e extinção da União
Soviética, restaram poucos países de economia centralizada, ampliando-se as
condições favoráveis à globalização dos mercados, com predomínio do financeiro.
Keynes, considerado o maior expoente da economia
mundial do Século 20, autor do clássico Teoria Geral do Emprego, Juro e Moeda (1936), diagnosticou que o princípio econômico não é
autorregulador. Em determinados estágios da economia, o Estado deve fazer o
papel de supridor de recursos para desamarrar as armadilhas que o mercado livre
preparou, mecanismo que indicou as saídas da Grande Depressão, nos anos 1930.
Afora a contradição que a “volta de Keynes” significou para os festivos adeptos
da liberação dos mercados, salvos de ruínas pelos estados, o ex-professor de
Cambridge sustentou por vias empíricas que o “espírito animal” dos empresários
ia além da racionalidade dos mercados. Uma sensibilidade não mensurada pelas
análises clássicas empurraria os empreendedores a lançar-se no oceano dos
negócios, a despeito de fundamentos adversos baseados na razão.
Autores têm se queixado da desconsideração ao aspecto
psicológico das iniciativas, de Keynes para cá, tempo em que a velocidade das
comunicações tornou os negócios financeiros mais volumosos e arriscados.
Os prazos para geração de crises diminuíram com os
novos instrumentos tecnológicos utilizados na propagação dos negócios.
A tese evolucionista do espiritismo, do crescimento do
ser espiritual desde a mais simples expressão biológica às mais complexas,
corrobora a atuação de forças instintivas de preservação da vida.
Na vida animal irracional os mais fortes assumem os
espaços e até se alimentam dos mais fracos. Esse “espírito animal”, ou estado
de ânimo, perdura no ser, de um lado com o efeito positivo de preservar a vida,
mas de outro, com o que seria a força, a exploração e a arrogância do mais
forte sobre o mais fraco.
O desafio do ser, ao longo de sua escalada evolutiva,
entre a denominada vida espiritual e as sucessivas encarnações no dito
plano material, está no que se classifica como depuração. Os instintos não se
perdem, porque a vida assim o exige, enquanto a experiência, o avanço do
Espírito, cresce até o ponto das relações de solidariedade e fraternidade.
Manuel S. Porteiro encara a tese do determinismo
histórico como sujeito ao fator econômico. No processo da história, diz,
intervêm fatores de natureza distinta e, essencialmente, o fator homem, sem o
qual não há economia social. “Eis a razão pela qual os homens que perseguem ideais
de emancipação econômica e social devam confiar mais nas forças espirituais, em
seu valor moral e em suas ideias, que no cego determinismo econômico, por si
mesmo necessitado de direção e finalidade.” 7
É interessante notar que o fator psicológico, como
deflagrador de iniciativas, tem percorrido diferentes exemplos ao longo da história
recente. Armadilhas de velhacos vão desde simplórios “contos do vigário”
até arquiteturas financeiras as mais sofisticadas, agora também pela Internet e
por aparelhos celulares, habilitados como veículos para apostas.
Registros contemporâneos citam diferentes artifícios,
desde o do bilhete premiado ao do envelope “recheado de dinheiro” atirado à
calçada, trocado por valores reais de incautos aposentados e viúvas que
sucumbem à lábia dos espertos, não sem concorrerem com uma dose de ambição. A
ânsia do prêmio que ‘caia do céu’, portanto, sem necessidade de suor do rosto,
parece
inata no homem.
Os brasileiros convivem com o jogo do bicho há quase um
século, sem amparo legal, uma atividade muito favorável aos ‘banqueiros’, que
disputam seus pontos à custa de crimes. Mas a ‘fezinha’ diária precisa ser
cumprida, numa autoexploração emotiva de quem arrisca seu precioso dinheiro nas
‘centenas’ e ‘- milhares’, com perdas do ‘primeiro ao quinto’.
Tem sido com base nesse princípio de sonho, crença e ambição
que o país vê-se inundado por jogos de azar, ainda que não assim classificados,
como a Mega-Sena, Dupla-Sena, Lotomania, Quina, Timemania, Loteca, Lotogol e a
tradicional Loteria Federal. Milhares de esquinas do país contam com casas
lotéricas, como se fora algo essencial à população, em contraste com
necessidades básicas não atendidas.
Bingos de toda espécie, complementados por máquinas
caça-níqueis, ainda que hoje fora da legalidade, persistem em funcionar,
explorando a mesma fragilidade humana: é preciso ganhar, sem se importar com
quem perde.
Na mesma faixa de ambição está a criatividade do
histórico Charles Ponzi (1882-1949). Nascido na Itália, Carlo, um de seus
nomes, emigrou para os Estados Unidos em 1903. Esteve no Canadá, voltou para os
EUA, depois para a Itália e finalmente para o Brasil, onde faleceu em um
hospital de indigentes.
O curso de sua vida foi marcado por golpes bem
arquitetados, sob o escudo de casas financiadoras que criou, sempre pela oferta
de retorno acima do mercado normal. Sob a denominação que se
tornou conhecida por “pirâmide” ou por Efeito Ponzi,
consistia em obter recursos de investidores atraídos por apetitosas remunerações,
pagamento de altas comissões, bons relacionamentos, status de celebridades, mas sem lastro.
O esquema, que se repete com as crises, tem semelhança
com o ato de pilotar-se uma bicicleta. O dinheiro novo remunera os aplicadores
já existentes, de tal modo que a roda não pode parar. Mas se um componente
dessa cadeia pede para sacar o que aplicou, em curto prazo, não há o recurso
suficiente e a bicicleta para e tomba.
Algumas dezenas de anos depois da morte de Ponzi, outro
emblemático golpista apareceu em cena: Bernard Madoff (1937), norte-americano,
ex-salvavidas em elegante praia dos Estados Unidos, por cerca de 15 anos tido
como figurão de Wall Street, nome endossado pela ocupação da presidência da
Nasdaq, a bolsa das empresas de tecnologia daquele país.
O surpreendente, nos ardis de Madoff, que oferecia
juros de 10% a 15% ao ano aos seus escolhidos clientes, aparece com a lista de
suas vítimas, não apenas de aposentados, como de grandes instituições
financeiras, de porte multinacional, algumas com representação no Brasil.
Madoff, condenado a 150 anos de prisão, em junho de
2009, por corte dos Estados Unidos, deixou um saldo negativo equivalente a US$
13,5 bilhões e uma montanha de ações de ex-clientes.
É também do tempo de Madoff o desfilar de encrencas
financeiras em que se meteram grandes empresas brasileiras apostadoras em
derivativos e pegas no contrapé do mercado cambial. Ao avançarem muito além de
suas ações comerciais, lançando-se no mercado financeiro em atitudes claramente
especulativas, perderam e jogaram no ralo da história preciosos anos de
trabalho e de formação de suas imagens.
Diferentes filósofos em múltiplas épocas procuraram
definir o comportamento hedonista (do grego hedone) do ser, aqui simplificado na
busca do prazer, contrapondo-se à dor. Aristipo de Cirene, pós-socrático, foi
um dos maiores defensores dessa doutrina, que surgiu na Grécia.
Importa que o prazer seja desfrutado, de forma imediata
e individual, para isso eliminando-se todos os obstáculos do caminho.
A versão brasileira do hedonismo tem marca simbólica
protagonizada pelo ex-atleta Gérson,8 tricampeão mundial de futebol, em
1970. Em claro desvio ético, em 1976, o então garoto-propaganda de uma marca
de cigarros cravou a frase que se tornaria conhecida por ‘Lei de Gérson’.
Em um filme de 31 segundos, após acender um cigarro, Gérson disse: “Gosto de
levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também.” A marca de
cigarro anunciada competia com preço mais barato ante concorrentes.
O atleta teria se arrependido de seu papel, mas pouco
adiantou.
Sociólogos, educadores, filósofos, marqueteiros,
debruçaram-se em interpretações do que seria ‘o espírito brasileiro’, em tom
negativo, aliado
ao ‘jeitinho’, de controversas conclusões. Sob nossa
análise comportamental, a mensagem de Gérson tratou do interesse em tirar-se
vantagem pessoal de algo. Ele próprio, afinal, cedeu à ambição por alguns
trocados, pela venda de sua fama e imagem.
Os Espíritos trabalham o tema da paixão com muito
cuidado, livrando-se de condená-la de forma irremediável. Até a consideram
positivamente: “a paixão está no excesso aliado à vontade, visto que o princípio
que lhe dá origem foi posto no homem para o bem, e pode levá-lo a grandes
coisas. O abuso que delas se faz é que causa o mal.” 9
Mais adiante, utilizam-se de uma imagem interessante: “As
paixões são como um cavalo, que só tem utilidade quando é governado e que se
torna perigoso quando passa a governar”. A indicação dos Espíritos é no sentido
de que cada um deve reconhecer quando uma paixão não consegue ser dominada “resultando
num prejuízo qualquer para vós mesmos ou para outros”, ponto em que é perniciosa.
Incluir a ambição entre as paixões desgovernadas é algo
coerente. A ambição também explica os abusos cometidos em torno do trabalho, da
exploração humana, da usura, da falsificação de produtos, do roubo no peso, que
levam à acumulação ilegítima de bens, com saldo moral negativo.
É nesse sentido que se coloca o Espírito Pascal.10 “O homem só possui em plena propriedade aquilo que lhe é dado
levar deste mundo. Do que encontra ao chegar e deixa ao partir goza ele
enquanto aqui permanece, mas, desde que é forçado a deixá-los, é claro que só
tem o usufruto, e não a posse real. O que é então que ele possui? Nada do que
se destina ao uso do corpo, e tudo o que se refere ao uso da alma: a
inteligência, os conhecimentos, as qualidades morais”.
Há sugestivas manifestações de Espíritos reproduzidas
no livro ‘O Céu e o Inferno’, como a de François Riquier,11 em 1862, um velho celibatário, avarento e muito popular,
falecido em 1857. É emblemática, por se tratar de ‘um espírito sofredor’, que a
todo custo quer reaver “O dinheiro do qual se apossaram os miseráveis, a fim de
o repartirem! Venderam fazendas, casas, tudo para se locupletarem! Desbarataram
meus bens como se não mais me pertencessem. Fazei que se me faça justiça...”.
Alguém na reunião mediúnica ponderou: “Mas vós estais
morto, meu caro senhor e não tendes mais necessidade alguma de dinheiro...”. O
comunicante: “Não, eu não poderei viver na pobreza. Preciso do meu dinheiro sem
o qual não posso viver. Demais, não preciso de outra existência, porque vivo
estou atualmente”. E nisto ele tinha razão.
A literatura espírita quer ajudar nesse diagnóstico
para o qual possui provocativas produções, como as de Cornélio Pires, poeta do
interior de São Paulo. Ele é autor de “Desregrada ambição”,12 uma página com imensa profundidade, sem abandonar a simplicidade
e até um toque de humor.
Cornélio Pires (Espírito)
“Recebi a sua carta,
Meu caro amigo Silvestre,
Você faz uma consulta
Em grave questão terrestre.
Você deseja saber
O que ocorre aos que se vão
Para a vida, além da morte
Em desregrada ambição.
O amigo não desconhece:
Ambição de fazer bem,
Anseio de ser melhor
Não faz mal a ninguém.
Mas a febre do egoísmo
De quem quer mais, mais e mais
Sem precisão ou proveito
Arrasa as forças mentais.
(...)
Você recorda o Nhô Neca
Que arruinou muita viúva,
Desencarnado é um mendigo
Mas pensa que é manda-chuva.
Depois de morto, o João Panca
Que só queria dinheiro,
É vigia de um tesouro
Que enterrou no galinheiro.
(...)
Depois de deixar o corpo,
A sovina Dona Bela
É vista à porta dos bancos
E diz que os bancos são dela.
Finou-se a falar em ouro
O nosso Nhonhô da Mata,
Ele agora cata pedras,
Achando que ajunta prata.
(...)
Tomou muita terra alheia
Nhô Chico do Lavajão,
Desencarnado ele clama
Em sete palmos de chão.
Morreu louco de avareza
O esperto Quinquim de Souza,
Tendo acordado na tumba
Quer vender a própria lousa.
(...)
Louva a paz do necessário
Que o trabalho nos consente,
Tudo aquilo que é demais
É desarranjo na mente.
Você mais cedo ou mais tarde,
Tal qual comigo se deu,
Ressurgirá no outro mundo,
Sozinho como nasceu”.
A repercussão da mais recente crise, de tão grave,
instigou outras manifestações no campo da arte de cunho popular. Ivan Wedekin
(nome artístico Ivan da Corina), diretor de commodities da BM&FBovespa e
Irineu da Palmira, cantor e compositor mineiro criaram uma parceria
oportunista. Eles produziram o ‘Samba do derivativo’,13 composição que une o mundo das aplicações financeiras com o da
vida de uma pessoa simples, adepta do boteco, do balcão e da cachaça.
O refrão “Eu sei/ Ontem era a pinga/ Hoje o derivativo”
dá o tom da música. Um dos seus trechos diz: “Minha nega me falou/ Que a minha
ação desabou/ Veja só que aflição/ Tanta margem pro meu risco/ Do pecado inda
me livro/ E desse tal derivativo”.
Vinícius de Moraes e Toquinho14 também produziram uma peça musical de significado vivencial, no
estilo gozador. Vida e morte se entrelaçam, de forma inapelável, com a
ostentação e a acumulação material vistas como desafios ao ser. A letra de “Testamento”
diz:
“Você que só ganha pra juntar/ O que é que há, diz pra
mim, o que é que há?/ Você vai ver um dia/ Em que fria você vai entrar./ Por
cima uma laje/ Embaixo a escuridão / É fogo, irmão! É fogo, irmão!
Pois é, amigo, como se dizia antigamente, o buraco é
mais embaixo... E você com todo o seu baú, vai ficar por lá na mais total
solidão, pensando à beça que não levou nada do que juntou: só seu terno de cerimônia.
Que fossa, hein, meu chapa, que fossa...
Você que não para pra pensar/ Que o tempo é curto e não
para de passar/ Você vai ver um dia, que remorso! / Como é bom parar/ Ver um
sol se pôr/ Ou ver um sol raiar/ E desligar, e desligar.
Mas você, que esperança... Bolsa, títulos, capital de
giro, public relations (e tome gravata!), protocolos, comendas, caviar,
champanhe (e tome gravata!), o amor sem paixão, o corpo sem alma, o pensamento sem
espírito (e tome gravata!) e lá um belo dia, o enfarte; ou, pior ainda, o
psiquiatra.
Você que só faz usufruir/ E tem mulher pra usar ou pra
exibir/ Você vai ver um dia Em que toca você foi bulir!/ A mulher foi feita/
Pro amor e pro perdão/ Cai nessa não, cai nessa não”.
A sequência de crises econômicas mostra que ainda é
rudimentar o patrimônio ético da maioria dos agentes desses mercados. Nítida
agressividade em busca de ganhos rápidos, apoiada por mecanismos tecnológicos e
virtuais de ampla disseminação, nada passa no exame de um padrão moral
sustentável.
Esse comportamento coincide com o diagnóstico dos
Espíritos segundo o qual o progresso intelectual nem sempre é seguido pelo
moral. “Deu chance, eu faturo”, deve ser o princípio das pessoas tidas como
astutas no mundo dos negócios. Até que ponto?
Provocados, os Espíritos lembraram que “Só o necessário
é útil. O supérfluo nunca o é”.
Inexiste mais simples e profundo conceito de
sustentabilidade para o planeta, sob qualquer ângulo de apreciação.
O interesse pela posse, no entanto, que move a maioria
das ações humanas, como algo natural, costuma transpassá-las, com reações
adversas para o ser. “É natural o desejo de
possuir? – Sim, mas quando o homem só deseja para si e para sua satisfação
pessoal, é puro egoísmo”, dizem
os Espíritos. Há até uma certa agressividade deles para enfatizar os efeitos do
egoísmo, diante do pressuposto de que pessoas são levadas pelo desejo de
possuir para não se tornarem peso para outrem. “Há homens insaciáveis, que
acumulam bens sem utilidade para ninguém, ou apenas para saciar suas paixões.” 15
A tese espírita, em razão do estágio do ser humano, é a
aspiração de um patrimônio que integre as necessidades materiais e intelectuais
com as espirituais, vistas em seu dinamismo evolucionista.
Essa nova concepção de vida estará imune a crises,
caracterizadas por aceleradas demandas, seguidas de profundas baixas, nas quais
os que se aproveitam das altas, não são, necessariamente, os penalizados pelas
baixas, configurando-se ciclos de injustiças e aprofundamento de desigualdades.
A proposta evolucionista-reencarnacionista, que faz o
eixo da tese espírita, sob uma visão livre de misticismos, oferece condições
para buscas contínuas materiais e espirituais, sem as pressões temporais consumistas,
vaidosas e preconceituosas.
Em um mundo solidário, onde os prazeres também
signifiquem expressões de apoio aos desnivelados material e espiritualmente,
não haverá crises, como as ondas de crescimento quantitativo da economia, porque
estarão naturalmente desfeitas as armadilhas das vantagens a
qualquer preço.
Diagnósticos da atual situação embaraçosa para o
planeta reconhecem a inconveniência para o nosso futuro da manutenção de
intenso aquecimento dos negócios, tanto pelo prisma da produção de bens, como dos
mecanismos financeiros e, finalmente, pelas condições físicas da Terra. Essas ‘bolhas’
são outras bombas silenciosas, com repercussões danosas e desproporcionais aos
menos favorecidos.
É provável que a crise de 2007-2009 seja conjurada,
como alguns sinais já o apontam, graças às intervenções governamentais, nas
mais diferentes regiões do planeta. A cultura histórica do homem, contudo, na busca
de lucros e resultados sem preocupações morais, dá as condições para a formação
de novas crises a qualquer tempo.
Mariotti aponta, como antídoto, o reconhecimento da
filosofia espírita como _ Ética e Sustentabilidade Humberto Mariotti:
O processo reencarnatório transforma-se em
fato social, dinâmico e multiplicador dos avanços individuais e coletivos A tese espírita, em seu dinamismo evolutivo,
integra as necessidades materiais e intelectuais com as espirituais transformar o processo reencarnatório em fato social,
dinâmico e multiplicador de avanços individuais e coletivos. A ‘vantagem’,
perseguida como troféu, não se encaixa nesse novo estado.
Por sua vez, um novo estágio ético nas relações e
inventivas econômicas, deverá aperfeiçoar as regulações entre investidores,
captadores e governos, tornando-as mais transparentes e imunes, na medida do
possível, ante a ambição humana, de riscos geradores de injustiças. Mas, e
sobretudo, está mesmo no homem a força das mudanças. A sociedade não é mais que
a soma das aspirações individuais, e por que não dizer, das ambições, sujeitas
ao dinamismo da vontade.
1 - Uma mistura explosiva de desaceleração
econômica mundial e preços dos alimentos que insistem em permanecer altos em
muitos países, empurraram mais 100 milhões de pessoas à fome e à pobreza. Esta
crise silenciosa da fome que afeta um de cada seis seres humanos supõe um sério risco para a paz e a segurança mundial .
Declaração, em junho de 2009, em Roma, de Jacques Diouf, diretor geral da FAO.
2 - Livro com lançamento no Brasil previsto para
outubro de 2009, pela editora Campus Elsevier. Conf. Suplemento EU & Fim de
Semana nº 450. Valor, 29/05/2009.
3 - Martin Wolf, colunista do Financial Times.
Valor, 22/06/09.
4 - Allan Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVI, 9. Edicel/SP, 1968. Tradução de José
Herculano Pires.
5 - Em O Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Edicel/SP, 1967. Tradução de J. L. Ovando, do
original castelhano Parapsicologia y
Materialismo Histórico,
Victor Hugo/Buenos Aires, 1963.
6 - Conferência no IEA/USP, A Psicologia do Agente Econômico, 13 de maio de 1994.
7 Manuel S. Porteiro, Espiritismo Dialético, C.E. José Barroso/SP, 2002. Tradução de José Rodrigues.
8 Gérson de Oliveira Nunes, Niterói/RJ
(11/01/1941), conhecido como Canhotinha de Ouro, meio-campista tricampeão da
Copa de 70 e exímio lançador.
9 - Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, questão 907. FEB/RJ, 2006. Tradução de Evandro
Noleto Bezerra.
10 - Idem (4).
11- Allan Kardec, O Céu e o Inferno, cap. IV, 2ª parte. FEB/RJ, 1944. Tradução de
Manuel Quintão.
12 - Cornélio Pires, Espírito, Retratos da Vida, psicografia de Francisco Cândido Xavier, Ed. CEC/MG
1974.
13 - Texto de Cristiane Perini Lucchesi.
Suplemento EU & Fim de Semana. Valor, 03, 04 e 07/09. Para ouvir o samba:
14 - Vinícius de Moraes (1913-1980) e Antonio
Pecci Filho, o Toquinho (1946). Produção de 1990.
15 - Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, questão 883. FEB/RJ, 2006.Tradução de Evandro
Noleto Bezerra.
(*) José Rodrigues, economista e jornalista, é coeditor do site PENSE
- Pensamento Social Espírita.
Ensaio originalmente apresentado no XI Simpósio
Brasileiro do Pensamento Espírita, realizado em Santos, em outubro de 2009.
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16 9 97935920 - 31 8786-7389
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