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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A Crise da Ambição


José Rodrigues (*)

Por cima uma laje/ Embaixo a escuridão/ É fogo irmão!/ É fogo irmão!
(Testamento - Vinícius de Moraes e Toquinho)

Crises sistêmicas da economia mundial refletem formas de ação individual e coletiva que não deixam dúvida sobre suas causas: a ambição.

Enquanto uma expressão exagerada da paixão, a ambição, como fator psicológico, não é considerada nas avaliações e previsões dos agentes econômicos, centradas em dados de predomínio quantitativo.

O espiritismo, em sua expressão filosófica, ao tratar das causas dos conflitos humanos, oferece elementos capazes de elucidar e ajudar a superação das crises, pela mudança de seus antecedentes.

O presente trabalho analisa o tema apoiado nos fundamentos éticos e morais do espiritismo, que têm vasto campo para crescer nas relações humanas, entre as quais as econômicas e, nestas, as financeiras. Aqui está o eixo das crises que têm abalado o mundo dos negócios, com repercussões sociais graves e injustas.

* * * * *

A mais vergonhosa contradição dos tempos recentes, em escala mundial, mantém suas chagas abertas. Ao tempo em que a maioria dos bancos centrais presta socorro ao setor financeiro — em seis meses o governo dos Estados Unidos, mais o Federal Reserve Board transferiram ao setor privado cerca de US$ 2 trilhões — a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO na sigla em inglês) denuncia que em 2009 o número de pobres e famintos no mundo cresceu 100 milhões de pessoas, para 1,02 bilhão. Equivale a um sexto da população global.1

O emprego é outra vítima do sistema. Em 2009, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre 210 milhões e 239 milhões de pessoas estariam desempregadas, respectivamente, com aumentos equivalentes a 6,5% e 7,4%, sobre níveis de 2007. Significa que de 39 milhões a 59 milhões de pessoas passam a engrossar a estatística dos desocupados no mundo. A entidade deixa claro que esse quadro negativo deriva da mais recente crise econômica mundial.

Está-se ante um fenômeno sistêmico da economia, institucionalizado pela omissão de dados reais de seus atores, mentiras, leniência, cumplicidade, práticas de altíssimos salários e prêmios a gestores, favorecedoras de subterfúgios, espertezas, prejuízos, instabilidades e incertezas, com o desaguar no desemprego e no aumento da pobreza. O fenômeno, que não pode ser atribuído ao acaso, muito menos a forças da natureza, persiste como a ludibriar os avaliadores de riscos, grandes instituições especializadas no ramo, com a aparente função de distinguir empresas e países com maior ou menor segurança para parcerias.

Esses efeitos passam batido na legislação reguladora dos países e da auditoria dos bancos, que têm deveres de proteção para com o público, pelas funções também públicas que desempenham.

A economia clássica, ao julgar-se uma ciência exata, procura dimensionar tendências por dados quantitativos, no que é desmentida pelos fatos. Inexiste, na ciência econômica, um indicador de limites para ofertas e demandas, ou seja, até que ponto um fenômeno passa do necessário ao especulativo, do útil à ambição. O desfecho desse processo costuma ser penoso, por contrariar leis naturais, escapáveis a um setor que se propõe a ser científico, mas cujo comportamento vislumbra a crença.

Haveria como um torpor generalizado nos agentes do mercado, sob uma falsa hipótese de que demandas e preços podem subir indefinidamente. Seria esse torpor, um sentimento natural, ou adquirido nas práticas do mercado?  Quais fatores compõem a decisão de cada um, ante o presente e o futuro?

O elemento faltante desse universo é o psicológico, em linguagem ampla, ou espiritual, mais profundo e adequado. Seu significado repercute de forma direta nos rumos da economia e da sociedade, a merecer uma avaliação na medida de sua importância humana e social.

A matéria-prima agora são itens como ambição, paixão, egoísmo, vaidade, poder, sexo, vontade de empreender, à conta de motivações do ser humano. Regulações em diferentes setores da economia, se frouxas, de pouca transparência, podem respaldar aquelas forças do ser, com favorecimento às crises.

A literatura econômica apenas resvala nesses componentes psicológicos mas, com a crise aprofundada entre 2007 e 2009, há uma renascente preocupação de colocá-los à mesa das análises, entre diagnósticos e perspectivas. Sob o ponto de vista espírita, admitindo-se que ambição, paixão e outros comportamentos estimuladores de decisões refletem uma estrutura mental egoísta e materialista, ainda que dentro de um amplo espectro de manifestações, propõe-se a questão:

Uma visão imortalista e palingenésica da existência terá força para alterar os fundamentos do homem e estabelecer relações mais justas e estáveis na economia e na sociedade?

Desde David Hume (1711-1776) e Adam Smith (1723-1790), ambos escoceses e iluministas, até John Maynard Keynes (1883-1946), também britânico, há argumentações sobre a importância de fatores psicológicos na economia. Mais recentemente, dois economistas norte-americanos, Robert Shiller, da Universidade de Yale e George Arkelof, da Universidade da Califórnia, este Nobel de Economia/2001, reativaram o conceito de “espírito animal”, como componente e acionador de decisões humanas, com repercussões na economia.

Shiller e Arkelof escreveram o – Animal Spirits – com o desafiador subtítulo “Como a psicologia humana comanda a economia e porque ela é importante para o capitalismo global”. Convicto de suas análises, Shiller, afirma que “Uma noção importante para a teoria econômica convencional é a ideia de que as pessoas são inexoravelmente egoístas, capazes de desrespeitar as leis e fazer qualquer coisa para maximizar seus lucros. Tem algo errado aí.”2

A temática cresce de importância com a mais recente crise, marcada pela quebra de históricas instituições financeiras dos Estados Unidos, detentoras dos títulos ‘podres’, os ‘subprimes’ e altamente expostas no conceito financeiro. O abalo maior ocorreu em setembro de 2008, com o pedido de concordata do Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimentos dos Estados Unidos, fundado em 1850 por três judeus imigrantes da Alemanha.

De fato, tanto a economia norte-americana, como de vários outros países de maior renda, encontravam-se altamente “alavancadas”, no jargão econômico, sinônimo de elevado endividamento em relação às suas receitas líquidas.

O fator eminentemente financeiro, que sempre supõe maior exposição a riscos, expandiu-se nas operações entre empresas e destas para o público, em montantes desproporcionais à economia real, a indicar ampla aposta no futuro. Esse mecanismo de criação de ‘bolhas’ repete-se ao longo da história, infladas, na sua mais recente versão, pelo setor imobiliário, com estímulo dos bancos, sob a falsa hipótese de ganhos contínuos e ilimitados.

Ponho em alta dúvida ética o mandamento capitalista da alavancagem, nos últimos tempos eleita como essencial nas iniciativas comerciais e de investimentos. Empresas muito alavancadas são aquelas que assumem elevados compromissos, ante suas reais disponibilidades em ativos e obtenção de receitas.

A estratégia é de operar com recursos de terceiros, bem acima dos próprios.

Uma complacência generalizada de fornecedores de recursos financeiros e de órgãos incumbidos de fiscalizar operações do tipo, convalidam a eleição do alto risco como algo normal. Legaliza-se, assim, o que mais à frente redundará em inadimplência, quebra de compromissos e tentativa de repasses de prejuízos.

E imaginar-se que tudo começou com o escambo! Trocar bens produzidos entre si, ou bens por serviços, marca o início das transações nas tribos. Sem moeda propriamente dita, o homem-agrícola buscava a simples  sobrevivência, até que a produtividade criou o excesso de produção e abriu o caminho para a mercadoria, o bem levado ao mercado.

Não se pode negar que a transformação das primeiras moedas, como o gado e o sal, em moedas cunhadas, representaram um avanço na praticidade dos negócios.

Mas as moedas também não seriam imunes às artimanhas do homem: tanto podiam ser falsificadas, como até hoje, quanto não representar o valor de face.

Ou seja, da moeda cunhada em ouro ou prata, passou-se para o cobre ou ligas metálicas diversas, ao tempo em que os valores inscritos nas cédulas não possuíam o respaldo em ouro. As cédulas careciam de lastro ou conversibilidade.

Observa-se ao longo da história que o ser humano tem sido ávido por ‘criar’ moeda, tarefa exclusiva do poder público. Essa avidez foi sempre perseguida pelo setor bancário, ao praticar empréstimos e cobrar juros. A pessoa que se endivida além de uma proporção razoável, ante sua possibilidade de gerar renda própria, acredita no mesmo princípio dos bancos.

Essa distorção tomou dimensões gigantescas com a liberalidade financeira. O saque contra o futuro passou à condição de norma, tanto que em nenhum momento da história, como no presente, se exaltou com tal grandiloqüência a utilidade do crédito. Sua escassez, com a quebra de confiança do mercado,
foi tida como catastrófica para os negócios.

Na economia norte-americana, que dita comportamentos mundiais, os exemplos de alavancagem denunciam extremada ambição, como se conclui destes números. Entre 1976 e 2008 o endividamento do setor privado cresceu de 112% para 295% do PIB dos Estados Unidos. Nesse meio, o setor financeiro saltou de 16% do PIB para 121%.3 Significa que a economia baseada em crédito e, não raro virtual, supera em larga medida a real, o que supõe altíssima exposição a riscos, na verdade, uma tendência de difícil reversão sem quebras no caminho.

Por detrás dessa e de outras crises, como a de 1929, detonada pela quebra da Bolsa de Nova York, que gerou a Grande Depressão, está o ser humano, em sua complexidade corpo e espírito. É esse ser que nos momentos de confiança dispara tendências para um lado, o do consumo e do investimento, para em seguida tomar o rumo inverso, encolhendo-se, quando há desconfiança, agora com geração de instabilidades e perdas para pessoas e mercados.

A sequência desse quadro vem pela corrida dos sistemas em aperfeiçoar suas regulações, não sem antes necessitar de socorro de recursos públicos, em escandaloso expediente socializante. Foi chocante a notícia segundo a qual executivos de um grupo econômico prestes a quebrar viajou de avião fretado para Washington a fim de darem explicações sobre motivos da aventura com o dinheiro de seus clientes.

A dúvida que cerca estas questões tem razões práticas. O pressuposto da unicidade da existência, a oportunidade de desfrute dos prazeres materiais, o sentimento de ser melhor do que os outros, favoreceria o ímpeto criativo das pessoas e estaria na base do interesse de empreender.

De outra parte, a certeza da imortalidade e a sobrevalorização da vida espiritual levariam o homem a um estado contemplativo, travado ante a criatividade, a produção de bens que a sociedade consome. Surge uma dúvida: abrir-mão de satisfações agora, para melhor colheita no mais além, conduziria a uma estagnação da sociedade, em seus diversos campos de manifestação? O Espírito Pascal,4 ao comunicar-se em Genebra, 1860, foi desafiador e categórico:

“O homem não possui senão aquilo que pode levar deste mundo”.

Humberto Mariotti5 receia o que chama de o homem-finito, sinalizador de “catástrofes espirituais”. O pensador espírita argentino faz esta reflexão: “Se o homem continuasse pensando em sua própria finitude, não há dúvida de que a civilização terminaria na mais terrível das catástrofes espirituais. Porque, se o homem-que-morre é quem deve reger o desenvolvimento humano, tudo será relativo e tenderá a malograr com a ideia do nada. Não haverá nenhum valor espiritual que se salve da morte definitiva. O homem finito, com seus afetos e aspirações, resultará em tragédia e fatalidade”.

David Hume, em seu Tratado na Natureza Humana, citado por Eduardo Gianetti da Fonseca,6 afirma que “há três classes de bens que os agentes podem perseguir e que se tornam objetos de suas atividades autointeressadas:

(I) a satisfação interna de nossa mente (bens da mente);

(II) as vantagens externas de nosso corpo como, por exemplo, desfrutar a saúde, o sexo e a boa aparência (bens do corpo); e

(III) o desfrute das posses que adquirimos por nossa própria indústria e boa sorte (bens externos)”.

Para Fonseca, a teoria smithiana “é uma tentativa de explicar a primazia relativa de (III), ‘o desfrute das posses’, na sociedade moderna...”.

Adam Smith tenta formular na Teoria dos Sentimentos Morais, a natureza da ambição econômica. Ele questiona o porquê de tantos caminhos pedregosos para o homem que pratica a avareza, por exemplo, na busca de riqueza, do poder e da preeminência.

Significa admitir-se que tanto a mais recente, quanto as anteriores ou posteriores crises na economia, derivam da mesma cultura desse homem-histórico. A amostragem internacional que se seguiu ao noticiário dos últimos tempos, de vilania, procura do ganho fácil, crimes financeiros declarados ou encobertos, oferece a medida de que o homem, em visão genérica, tem dado passos bem curtos na direção do respeito ao próximo, à valorização do trabalho pessoal e ao próprio crescimento espiritual.

Cabe, assim, uma avaliação dos sistemas econômicos que têm prevalecido contemporaneamente.

De fato, o capitalismo, desde a Revolução Industrial (Século 18) obteve amplo crescimento mundial, baseado na liberdade de empreender, respeito à propriedade individual e acumulação de resultados. Por sua vez, a Revolução Bolchevique (1917), de inspiração comunista, que perdurou por quase 70 anos, elegeu o Estado como principal agente da economia. Mas esse modelo não se sustentou. Após a queda do Muro de Berlim (1989) e extinção da União Soviética, restaram poucos países de economia centralizada, ampliando-se as condições favoráveis à globalização dos mercados, com predomínio do financeiro.

Keynes, considerado o maior expoente da economia mundial do Século 20, autor do clássico Teoria Geral do Emprego, Juro e Moeda (1936), diagnosticou que o princípio econômico não é autorregulador. Em determinados estágios da economia, o Estado deve fazer o papel de supridor de recursos para desamarrar as armadilhas que o mercado livre preparou, mecanismo que indicou as saídas da Grande Depressão, nos anos 1930. Afora a contradição que a “volta de Keynes” significou para os festivos adeptos da liberação dos mercados, salvos de ruínas pelos estados, o ex-professor de Cambridge sustentou por vias empíricas que o “espírito animal” dos empresários ia além da racionalidade dos mercados. Uma sensibilidade não mensurada pelas análises clássicas empurraria os empreendedores a lançar-se no oceano dos negócios, a despeito de fundamentos adversos baseados na razão.

Autores têm se queixado da desconsideração ao aspecto psicológico das iniciativas, de Keynes para cá, tempo em que a velocidade das comunicações tornou os negócios financeiros mais volumosos e arriscados.

Os prazos para geração de crises diminuíram com os novos instrumentos tecnológicos utilizados na propagação dos negócios.

A tese evolucionista do espiritismo, do crescimento do ser espiritual desde a mais simples expressão biológica às mais complexas, corrobora a atuação de forças instintivas de preservação da vida.

Na vida animal irracional os mais fortes assumem os espaços e até se alimentam dos mais fracos. Esse “espírito animal”, ou estado de ânimo, perdura no ser, de um lado com o efeito positivo de preservar a vida, mas de outro, com o que seria a força, a exploração e a arrogância do mais forte sobre o mais fraco.

O desafio do ser, ao longo de sua escalada evolutiva, entre a denominada vida espiritual e as sucessivas encarnações no dito plano material, está no que se classifica como depuração. Os instintos não se perdem, porque a vida assim o exige, enquanto a experiência, o avanço do Espírito, cresce até o ponto das relações de solidariedade e fraternidade.

Manuel S. Porteiro encara a tese do determinismo histórico como sujeito ao fator econômico. No processo da história, diz, intervêm fatores de natureza distinta e, essencialmente, o fator homem, sem o qual não há economia social. “Eis a razão pela qual os homens que perseguem ideais de emancipação econômica e social devam confiar mais nas forças espirituais, em seu valor moral e em suas ideias, que no cego determinismo econômico, por si mesmo necessitado de direção e finalidade.” 7

É interessante notar que o fator psicológico, como deflagrador de iniciativas, tem percorrido diferentes exemplos ao longo da história recente. Armadilhas de velhacos vão desde simplórios “contos do vigário” até arquiteturas financeiras as mais sofisticadas, agora também pela Internet e por aparelhos celulares, habilitados como veículos para apostas.

Registros contemporâneos citam diferentes artifícios, desde o do bilhete premiado ao do envelope “recheado de dinheiro” atirado à calçada, trocado por valores reais de incautos aposentados e viúvas que sucumbem à lábia dos espertos, não sem concorrerem com uma dose de ambição. A ânsia do prêmio que ‘caia do céu’, portanto, sem necessidade de suor do rosto, parece
inata no homem.

Os brasileiros convivem com o jogo do bicho há quase um século, sem amparo legal, uma atividade muito favorável aos ‘banqueiros’, que disputam seus pontos à custa de crimes. Mas a ‘fezinha’ diária precisa ser cumprida, numa autoexploração emotiva de quem arrisca seu precioso dinheiro nas ‘centenas’ e ‘- milhares’, com perdas do ‘primeiro ao quinto’.

Tem sido com base nesse princípio de sonho, crença e ambição que o país vê-se inundado por jogos de azar, ainda que não assim classificados, como a Mega-Sena, Dupla-Sena, Lotomania, Quina, Timemania, Loteca, Lotogol e a tradicional Loteria Federal. Milhares de esquinas do país contam com casas lotéricas, como se fora algo essencial à população, em contraste com necessidades básicas não atendidas.

Bingos de toda espécie, complementados por máquinas caça-níqueis, ainda que hoje fora da legalidade, persistem em funcionar, explorando a mesma fragilidade humana: é preciso ganhar, sem se importar com quem perde.

Na mesma faixa de ambição está a criatividade do histórico Charles Ponzi (1882-1949). Nascido na Itália, Carlo, um de seus nomes, emigrou para os Estados Unidos em 1903. Esteve no Canadá, voltou para os EUA, depois para a Itália e finalmente para o Brasil, onde faleceu em um hospital de indigentes.

O curso de sua vida foi marcado por golpes bem arquitetados, sob o escudo de casas financiadoras que criou, sempre pela oferta de retorno acima do mercado normal. Sob a denominação que se tornou conhecida por “pirâmide” ou por Efeito Ponzi, consistia em obter recursos de investidores atraídos por apetitosas remunerações, pagamento de altas comissões, bons relacionamentos, status de celebridades, mas sem lastro.

O esquema, que se repete com as crises, tem semelhança com o ato de pilotar-se uma bicicleta. O dinheiro novo remunera os aplicadores já existentes, de tal modo que a roda não pode parar. Mas se um componente dessa cadeia pede para sacar o que aplicou, em curto prazo, não há o recurso suficiente e a bicicleta para e tomba.

Algumas dezenas de anos depois da morte de Ponzi, outro emblemático golpista apareceu em cena: Bernard Madoff (1937), norte-americano, ex-salvavidas em elegante praia dos Estados Unidos, por cerca de 15 anos tido como figurão de Wall Street, nome endossado pela ocupação da presidência da Nasdaq, a bolsa das empresas de tecnologia daquele país.

O surpreendente, nos ardis de Madoff, que oferecia juros de 10% a 15% ao ano aos seus escolhidos clientes, aparece com a lista de suas vítimas, não apenas de aposentados, como de grandes instituições financeiras, de porte multinacional, algumas com representação no Brasil.

Madoff, condenado a 150 anos de prisão, em junho de 2009, por corte dos Estados Unidos, deixou um saldo negativo equivalente a US$ 13,5 bilhões e uma montanha de ações de ex-clientes.

É também do tempo de Madoff o desfilar de encrencas financeiras em que se meteram grandes empresas brasileiras apostadoras em derivativos e pegas no contrapé do mercado cambial. Ao avançarem muito além de suas ações comerciais, lançando-se no mercado financeiro em atitudes claramente especulativas, perderam e jogaram no ralo da história preciosos anos de trabalho e de formação de suas imagens.

Diferentes filósofos em múltiplas épocas procuraram definir o comportamento hedonista (do grego hedone) do ser, aqui simplificado na busca do prazer, contrapondo-se à dor. Aristipo de Cirene, pós-socrático, foi um dos maiores defensores dessa doutrina, que surgiu na Grécia.

Importa que o prazer seja desfrutado, de forma imediata e individual, para isso eliminando-se todos os obstáculos do caminho.

A versão brasileira do hedonismo tem marca simbólica protagonizada pelo ex-atleta Gérson,8 tricampeão mundial de futebol, em 1970. Em claro desvio ético, em 1976, o então garoto-propaganda de uma marca de cigarros cravou a frase que se tornaria conhecida por ‘Lei de Gérson’. Em um filme de 31 segundos, após acender um cigarro, Gérson disse: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também.” A marca de cigarro anunciada competia com preço mais barato ante concorrentes.

O atleta teria se arrependido de seu papel, mas pouco adiantou.

Sociólogos, educadores, filósofos, marqueteiros, debruçaram-se em interpretações do que seria ‘o espírito brasileiro’, em tom negativo, aliado
ao ‘jeitinho’, de controversas conclusões. Sob nossa análise comportamental, a mensagem de Gérson tratou do interesse em tirar-se vantagem pessoal de algo. Ele próprio, afinal, cedeu à ambição por alguns trocados, pela venda de sua fama e imagem.

Os Espíritos trabalham o tema da paixão com muito cuidado, livrando-se de condená-la de forma irremediável. Até a consideram positivamente: “a paixão está no excesso aliado à vontade, visto que o princípio que lhe dá origem foi posto no homem para o bem, e pode levá-lo a grandes coisas. O abuso que delas se faz é que causa o mal.” 9

Mais adiante, utilizam-se de uma imagem interessante: “As paixões são como um cavalo, que só tem utilidade quando é governado e que se torna perigoso quando passa a governar”. A indicação dos Espíritos é no sentido de que cada um deve reconhecer quando uma paixão não consegue ser dominada “resultando num prejuízo qualquer para vós mesmos ou para outros”, ponto em que é perniciosa.

Incluir a ambição entre as paixões desgovernadas é algo coerente. A ambição também explica os abusos cometidos em torno do trabalho, da exploração humana, da usura, da falsificação de produtos, do roubo no peso, que levam à acumulação ilegítima de bens, com saldo moral negativo.

É nesse sentido que se coloca o Espírito Pascal.10 “O homem só possui em plena propriedade aquilo que lhe é dado levar deste mundo. Do que encontra ao chegar e deixa ao partir goza ele enquanto aqui permanece, mas, desde que é forçado a deixá-los, é claro que só tem o usufruto, e não a posse real. O que é então que ele possui? Nada do que se destina ao uso do corpo, e tudo o que se refere ao uso da alma: a inteligência, os conhecimentos, as qualidades morais”.

Há sugestivas manifestações de Espíritos reproduzidas no livro ‘O Céu e o Inferno’, como a de François Riquier,11 em 1862, um velho celibatário, avarento e muito popular, falecido em 1857. É emblemática, por se tratar de ‘um espírito sofredor’, que a todo custo quer reaver “O dinheiro do qual se apossaram os miseráveis, a fim de o repartirem! Venderam fazendas, casas, tudo para se locupletarem! Desbarataram meus bens como se não mais me pertencessem. Fazei que se me faça justiça...”.

Alguém na reunião mediúnica ponderou: “Mas vós estais morto, meu caro senhor e não tendes mais necessidade alguma de dinheiro...”. O comunicante: “Não, eu não poderei viver na pobreza. Preciso do meu dinheiro sem o qual não posso viver. Demais, não preciso de outra existência, porque vivo estou atualmente”. E nisto ele tinha razão.

A literatura espírita quer ajudar nesse diagnóstico para o qual possui provocativas produções, como as de Cornélio Pires, poeta do interior de São Paulo. Ele é autor de “Desregrada ambição”,12 uma página com imensa profundidade, sem abandonar a simplicidade e até um toque de humor.

Cornélio Pires (Espírito)

“Recebi a sua carta,
Meu caro amigo Silvestre,
Você faz uma consulta
Em grave questão terrestre.
Você deseja saber
O que ocorre aos que se vão
Para a vida, além da morte
Em desregrada ambição.
O amigo não desconhece:
Ambição de fazer bem,
Anseio de ser melhor
Não faz mal a ninguém.
Mas a febre do egoísmo
De quem quer mais, mais e mais
Sem precisão ou proveito
Arrasa as forças mentais.
(...)
Você recorda o Nhô Neca
Que arruinou muita viúva,
Desencarnado é um mendigo
Mas pensa que é manda-chuva.
Depois de morto, o João Panca
Que só queria dinheiro,
É vigia de um tesouro
Que enterrou no galinheiro.
(...)
Depois de deixar o corpo,
A sovina Dona Bela
É vista à porta dos bancos
E diz que os bancos são dela.
Finou-se a falar em ouro
O nosso Nhonhô da Mata,
Ele agora cata pedras,
Achando que ajunta prata.
(...)
Tomou muita terra alheia
Nhô Chico do Lavajão,
Desencarnado ele clama
Em sete palmos de chão.
Morreu louco de avareza
O esperto Quinquim de Souza,
Tendo acordado na tumba
Quer vender a própria lousa.
(...)
Louva a paz do necessário
Que o trabalho nos consente,
Tudo aquilo que é demais
É desarranjo na mente.
Você mais cedo ou mais tarde,
Tal qual comigo se deu,
Ressurgirá no outro mundo,
Sozinho como nasceu”.

A repercussão da mais recente crise, de tão grave, instigou outras manifestações no campo da arte de cunho popular. Ivan Wedekin (nome artístico Ivan da Corina), diretor de commodities da BM&FBovespa e Irineu da Palmira, cantor e compositor mineiro criaram uma parceria oportunista. Eles produziram o ‘Samba do derivativo’,13 composição que une o mundo das aplicações financeiras com o da vida de uma pessoa simples, adepta do boteco, do balcão e da cachaça.

O refrão “Eu sei/ Ontem era a pinga/ Hoje o derivativo” dá o tom da música. Um dos seus trechos diz: “Minha nega me falou/ Que a minha ação desabou/ Veja só que aflição/ Tanta margem pro meu risco/ Do pecado inda me livro/ E desse tal derivativo”.

Vinícius de Moraes e Toquinho14 também produziram uma peça musical de significado vivencial, no estilo gozador. Vida e morte se entrelaçam, de forma inapelável, com a ostentação e a acumulação material vistas como desafios ao ser. A letra de “Testamento” diz:

“Você que só ganha pra juntar/ O que é que há, diz pra mim, o que é que há?/ Você vai ver um dia/ Em que fria você vai entrar./ Por cima uma laje/ Embaixo a escuridão / É fogo, irmão! É fogo, irmão!

Pois é, amigo, como se dizia antigamente, o buraco é mais embaixo... E você com todo o seu baú, vai ficar por lá na mais total solidão, pensando à beça que não levou nada do que juntou: só seu terno de cerimônia. Que fossa, hein, meu chapa, que fossa...

Você que não para pra pensar/ Que o tempo é curto e não para de passar/ Você vai ver um dia, que remorso! / Como é bom parar/ Ver um sol se pôr/ Ou ver um sol raiar/ E desligar, e desligar.

Mas você, que esperança... Bolsa, títulos, capital de giro, public relations (e tome gravata!), protocolos, comendas, caviar, champanhe (e tome gravata!), o amor sem paixão, o corpo sem alma, o pensamento sem espírito (e tome gravata!) e lá um belo dia, o enfarte; ou, pior ainda, o psiquiatra.

Você que só faz usufruir/ E tem mulher pra usar ou pra exibir/ Você vai ver um dia Em que toca você foi bulir!/ A mulher foi feita/ Pro amor e pro perdão/ Cai nessa não, cai nessa não”.

A sequência de crises econômicas mostra que ainda é rudimentar o patrimônio ético da maioria dos agentes desses mercados. Nítida agressividade em busca de ganhos rápidos, apoiada por mecanismos tecnológicos e virtuais de ampla disseminação, nada passa no exame de um padrão moral sustentável.

Esse comportamento coincide com o diagnóstico dos Espíritos segundo o qual o progresso intelectual nem sempre é seguido pelo moral. “Deu chance, eu faturo”, deve ser o princípio das pessoas tidas como astutas no mundo dos negócios. Até que ponto?

Provocados, os Espíritos lembraram que “Só o necessário é útil. O supérfluo nunca o é”.

Inexiste mais simples e profundo conceito de sustentabilidade para o planeta, sob qualquer ângulo de apreciação.

O interesse pela posse, no entanto, que move a maioria das ações humanas, como algo natural, costuma transpassá-las, com reações adversas para o ser. “É natural o desejo de possuir? – Sim, mas quando o homem só deseja para si e para sua satisfação pessoal, é puro egoísmo”, dizem os Espíritos. Há até uma certa agressividade deles para enfatizar os efeitos do egoísmo, diante do pressuposto de que pessoas são levadas pelo desejo de possuir para não se tornarem peso para outrem. “Há homens insaciáveis, que acumulam bens sem utilidade para ninguém, ou apenas para saciar suas paixões.” 15

A tese espírita, em razão do estágio do ser humano, é a aspiração de um patrimônio que integre as necessidades materiais e intelectuais com as espirituais, vistas em seu dinamismo evolucionista.

Essa nova concepção de vida estará imune a crises, caracterizadas por aceleradas demandas, seguidas de profundas baixas, nas quais os que se aproveitam das altas, não são, necessariamente, os penalizados pelas baixas, configurando-se ciclos de injustiças e aprofundamento de desigualdades.

A proposta evolucionista-reencarnacionista, que faz o eixo da tese espírita, sob uma visão livre de misticismos, oferece condições para buscas contínuas materiais e espirituais, sem as pressões temporais consumistas, vaidosas e preconceituosas.

Em um mundo solidário, onde os prazeres também signifiquem expressões de apoio aos desnivelados material e espiritualmente, não haverá crises, como as ondas de crescimento quantitativo da economia, porque estarão naturalmente desfeitas as armadilhas das vantagens a
qualquer preço.

Diagnósticos da atual situação embaraçosa para o planeta reconhecem a inconveniência para o nosso futuro da manutenção de intenso aquecimento dos negócios, tanto pelo prisma da produção de bens, como dos mecanismos financeiros e, finalmente, pelas condições físicas da Terra. Essas ‘bolhas’ são outras bombas silenciosas, com repercussões danosas e desproporcionais aos menos favorecidos.

É provável que a crise de 2007-2009 seja conjurada, como alguns sinais já o apontam, graças às intervenções governamentais, nas mais diferentes regiões do planeta. A cultura histórica do homem, contudo, na busca de lucros e resultados sem preocupações morais, dá as condições para a formação de novas crises a qualquer tempo.

Mariotti aponta, como antídoto, o reconhecimento da filosofia espírita como _ Ética e Sustentabilidade Humberto Mariotti:

O processo reencarnatório transforma-se em fato social, dinâmico e multiplicador dos avanços individuais e coletivos A tese espírita, em seu dinamismo evolutivo, integra as necessidades materiais e intelectuais com as espirituais transformar o processo reencarnatório em fato social, dinâmico e multiplicador de avanços individuais e coletivos. A ‘vantagem’, perseguida como troféu, não se encaixa nesse novo estado.

Por sua vez, um novo estágio ético nas relações e inventivas econômicas, deverá aperfeiçoar as regulações entre investidores, captadores e governos, tornando-as mais transparentes e imunes, na medida do possível, ante a ambição humana, de riscos geradores de injustiças. Mas, e sobretudo, está mesmo no homem a força das mudanças. A sociedade não é mais que a soma das aspirações individuais, e por que não dizer, das ambições, sujeitas ao dinamismo da vontade.

1 - Uma mistura explosiva de desaceleração econômica mundial e preços dos alimentos que insistem em permanecer altos em muitos países, empurraram mais 100 milhões de pessoas à fome e à pobreza. Esta crise silenciosa da fome que afeta um de cada seis seres humanos supõe um sério risco para a paz e a segurança mundial . Declaração, em junho de 2009, em Roma, de Jacques Diouf, diretor geral da FAO.

2 - Livro com lançamento no Brasil previsto para outubro de 2009, pela editora Campus Elsevier. Conf. Suplemento EU & Fim de Semana nº 450. Valor, 29/05/2009.

3 - Martin Wolf, colunista do Financial Times. Valor, 22/06/09.

4 - Allan Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVI, 9. Edicel/SP, 1968. Tradução de José Herculano Pires.

5 - Em O Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Edicel/SP, 1967. Tradução de J. L. Ovando, do original castelhano Parapsicologia y Materialismo Histórico, Victor Hugo/Buenos Aires, 1963.

6 - Conferência no IEA/USP, A Psicologia do Agente Econômico, 13 de maio de 1994.

7 Manuel S. Porteiro, Espiritismo Dialético, C.E. José Barroso/SP, 2002. Tradução de José Rodrigues.

8 Gérson de Oliveira Nunes, Niterói/RJ (11/01/1941), conhecido como Canhotinha de Ouro, meio-campista tricampeão da Copa de 70 e exímio lançador.

9 - Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, questão 907. FEB/RJ, 2006. Tradução de Evandro Noleto Bezerra.

10 - Idem (4).

11- Allan Kardec, O Céu e o Inferno, cap. IV, 2ª parte. FEB/RJ, 1944. Tradução de Manuel Quintão.

12 - Cornélio Pires, Espírito, Retratos da Vida, psicografia de Francisco Cândido Xavier, Ed. CEC/MG 1974.

13 - Texto de Cristiane Perini Lucchesi. Suplemento EU & Fim de Semana. Valor, 03, 04 e 07/09. Para ouvir o samba:

14 - Vinícius de Moraes (1913-1980) e Antonio Pecci Filho, o Toquinho (1946). Produção de 1990.

15 - Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, questão 883. FEB/RJ, 2006.Tradução de Evandro Noleto Bezerra.

(*) José Rodrigues, economista e jornalista, é coeditor do site PENSE - Pensamento Social Espírita.

Ensaio originalmente apresentado no XI Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, realizado em Santos, em outubro de 2009.



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