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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A Emergência da Pessoa


Dalmo Duque dos Santos

O século XIX foi marcado pela explosão de movimentos de busca de felicidade, como reflexo dos desequilíbrios causados pela revolução industrial. No século XX essas ideologias e utopias tomaram formas esdrúxulas, em forma de sistemas políticos totalitários, guerras monstruosas, aniquilamento humano e ambiental. O próprio planeta foi colocado em risco diante da ameaça de uma hecatombe nuclear. Morte, servidão industrial, massificação, miséria, individualismo, narcisismo foram as principais marcas desse século tão promissor e ao mesmo tempo tão sombrio. Durante esses cem anos estivemos mergulhados na ambição e no medo, na extravagância e na fome, nas multidões e na solidão, nas fantasias e na depressão; ora iludidos pela fama de quinze minutos, ora derrotados pela desilusão das coisas efêmeras. Nunca se registrou tamanha situação de caos na experiência humana, uma crise sem precedentes; nunca se consumiu tantas drogas e alucinógenos para facilitar a fuga da realidade. A expansão da criminalidade e o aumento da população carcerária atingiram níveis assustadores.


Mas foi também no mesmo século XX, em plena crise, que surgiram os germes de uma nova forma de vida. Da própria ciência decadente aparecem novos paradigmas de observação da realidade; das próprias instituições, impotentes e desmoralizadas, brotam novas perspectivas para civilização. Uma nova geração começa a nascer no planeta, demonstrando um comportamento diferente dos seus antepassados. É a emergência da pessoa, antes sufocada pelo coletivismo da cultura de massas. Marilyn Ferguson[1] definiu esse curioso fenômeno como uma “conspiração ”. Esse novo ser humano se recusa ser tratado como uma peça de consumo ou mero dado estatístico. São eles novos focos de uma transformação silenciosa, sem alardes, e que se intercomunicam pela afinidade de sentimentos. “Conspiram” porque “respiram” juntos o mesmo ar, os mesmos anseios. São portadores de uma revolução invertida, de dentro para fora, e por isso permanecem em silêncio, num compasso de espera, aguardando o momento certo para atuar. Não poderiam comprometer a nova ordem das coisas. Muitos deles já entraram em cena e desempenharam complicados papéis de mudança; papéis de destaque ou anônimos, como suportes ou pontas de lança, mas todos comprometidos com as transformações. São pessoas diferentes e que continuam a nascer todos os dias. Segundo Carl Rogers[2], eles terão uma infância atormentada, sofrerão as adversidades de um ambiente estranho e hostil, mas conseguirão sobreviver. Irão crescer, instruir-se para exercer as mais diversas profissões, geralmente ligadas ao processo de mudanças: na educação, nas artes, nos laboratórios, no ativismo social. Serão autênticos agentes da regeneração planetária e por isso ocuparão novos espaços e saberão explorar o novo tempo. É claro que também estão nascendo seres iguais ou piores aos do século XX, mas já são em menor número e brevemente serão impedidos de agir negativamente, pois serão vistos claramente como seres medíocres ou aberrações de passado inaceitável.

O momento atual é de lutas entre o velho e o novo, entre o vício e a virtude e de intensas contradições; é muito delicado e exige paciência e confiança no futuro; é uma longa fase de transição que deve ser vivida com coragem e vivenciada com aceitação e até sacrifício, como necessidade natural do processo de transformação.

Neste início de um novo século e de um novo milênio as instituições que trabalham pela qualidade de vida no planeta e pelo desenvolvimento da Humanidade já demonstram um vivo interesse em dar novos rumos no conhecimento e na melhoria da experiência humana. A Unesco, por exemplo, que é um órgão da Organização das Nações Unidas e voltado para as questões educacionais, elaborou um vasto estudo sobre as necessidades a serem preenchidas neste setor. Tais estudos devem preparar a Humanidade para os novos paradigmas sociais do novo milênio. Esse relatório, preparado por célebres educadores de diversos países e coordenado por Jacques Delors, elegeu como ponto fundamental os Quatro Pilares da educação para o futuro:

Aprender a Conhecer

Aprender a Fazer

Aprender a Conviver

Aprender a Ser.

Nesses quatro verbos dinâmicos, certamente inspirados por inteligências espirituais superiores, estão contidas e sintetizadas as experiências essenciais da vivência humana, incluindo as inteligências múltiplas. Neles visualizamos não só os conteúdos teóricos racionais e exteriores, mas também a valorização das experiências emocionais, fortemente responsáveis pela plenitude existencial da nossa espécie. Numa ordem evolutiva de transformação da pessoa – de dentro para fora e de fora para dentro - eles contemplam, portanto, não só as habilidades cognitivas, mas também as competências, que influenciam o ser humano a tomar as mais importantes decisões. Mostram ainda, pela interação, as múltiplas faces e possibilidades do Ser:

Ser corpóreo: de dimensão e complexidade biológica.

Ser inteligente: de dimensão mental e complexidade psicológica.

Ser emotivo: de sensibilidade e expressividade sentimental.

Ser social: de relações e afinidades interpessoais.

Ser livre: de ir e vir, de agir e decidir.

Ser estético: que se alimenta de imagens e auto-imagens.

Ser volitivo: que se move pela vontade.

Ser histórico e planetário: do seu tempo e do seu ambiente.

Ser cósmico: de condição e consciência meta planetária.

Ser espiritual: de origem e condição metafísica.

Ser moral: de natureza ética, de dinâmica evolutiva e positiva.

Nessa mesma linha de novas descobertas sobre a natureza humana e de propostas renovadoras Bernardo Toro[3] desenvolveu “Os Sete Códigos da Modernidade”, que são os saberes necessários para compreender e conviver na nova sociedade contemporânea. Baseando-se em experiências desafiadoras de ensino e educação em escolas públicas e comunidades carentes, o pesquisador colombiano identificou as principais ferramentas para interpretação e experimentação desse novo mundo, dessa nova ordem: velocidade tecnológica, diversidade social, incerteza e instabilidade de paradigmas, incongruência entre o efêmero e as permanências, multiculturalismo e fragmentação da realidade são as novas condições de vida e perspectivas que a humanidade tem pela frente.~

Dominar as diferentes formas de leitura e escrita;

Resolver equações lógicas e psicológicas;

Analisar, descrever e interpretar dados, fatos e situações;

Compreender e atuar no contexto social;

Receber aberta e criticamente os meios e mensagens da comunicação;

Localizar, acessar e otimizar a informação acumulada;

Planejar, trabalhar e decidir em grupo.

As Contra-correntes de regeneração

Outra tendência afinada com tais propostas são as idéias do filósofo Edgard Morin[4], cuja análise histórica da passagem do milênio identificou as três principais forças negativas predominantes no século XX : o aniquilamento, o irracionalismo e a servidão industrial. Identificou também, por outro lado, as contra-correntes que lutam pelo estabelecimento de uma nova ordem mundial, mais harmônica e humanista:

Ecologista: movimenta-se pela preservação ambiental e pela conscientização ecológica;

Qualitativa: luta pela qualidade de vida, pela humanização do trabalho, pelo exercício dos direitos de cidadania e integridade humanas;

Resistência ao consumismo: pratica a temperança, a frugalidade e luta contra o consumo supérfluo e a cultura do desperdício de recursos;

Resistência ao capitalismo desumano: é contra a tirania do dinheiro e do lucro e luta pela correta aplicação e distribuição da riqueza;

Resistência à frieza utilitarista: exemplifica a poesia, a espiritualidade e o amor; combate a disseminação do comportamento individualista e da indiferença social;

Pacifista: acredita no amor e no perdão e trabalha contra a disseminação da violência.

Segundo Morin todas essas contra-correntes buscam um novo sentido para a Humanidade, na construção de uma Civilização Planetária, através do desenvolvimento de uma consciência antropológica, da maturação de um civismo global e da espiritualização da condição humana. Profetizadas nas obras de ficção científica de Isac Asimov, como “fundações”, esses núcleos sociais ou átomos regeneradores foram surgindo em pequenos grupos idealistas na medida em ocorriam os abusos empreendidos pelas forças destruidoras e tirânicas e que colocavam em risco milhões de anos de evolução. Inicialmente foram vistas com desconfiança pela sociedade exatamente porque ousavam destoar dos conceitos comuns. Eram desacreditados porque se apoiavam em pessoas sem nenhuma influência formal, e sim em jovens idealistas, ad ultos já conhecidos como velhos rebeldes, grupos de utopistas que nunca haviam mostrado resultados práticos de suas idéias. Mas com o tempo essas contra-correntes foram crescendo, tomando forma e força, ocupando espaço político e social. Na década de 1960 eram apenas pequenos grupos isolados; na década de 1980 foi tomando formato de organizações, como do Partido Verde, na Alemanha. E de protesto em protesto, e muitos abaixo-assinados, as contra-correntes foram se impondo como alternativas aos sistemas opressores do capital industrial, gerador de guerras, de morte e destruição ambiental. Podemos identificar na reunião de todas elas a síntese da Regeneração, na qual o nosso planeta poderá superar a condição de mundo inferior - de provas e expiações – adquirindo um perfil superior em moralidade e harmonia com as leis universais.

Atualmente continuamos insistindo nessa desarmonia com essas leis e por isso sofremos constantemente os choques de retorno dessas ações negativas. Elas são, quase sempre, estimuladas pelo egoísmo, pelo individualismo, pela ganância, pelo hábito pessoal e social das fugas da realidade, da mentira, da ilusão, da alucinação e outros mecanismos defensivos mentais. Essa situação de impasse entre a animalidade instintiva e a humanidade intuitiva exige uma reestruturação mental, pela educação dos sentidos físicos e psíquicos.

Novos verbos dinâmicos também estão nesse repertório de grandes transformações históricas visualizadas por Morin: o bem pensar; o cultivo da introspecção; a abertura para novas idéias e experiências; compreensão, pela empatia , da diversidade planetária e da complexidade humana. Tudo isso se resume numa nova Inteligência Global.

Referências:

[1] A Conspiração Aquariana – Transformações pessoais nos anos 80. Editora  Record

[2] Um novo mundo, uma nova pessoa, in Em busca de vida. Summus Editorial.

[3] Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita.

[4] Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. Cortez.

Artigo Reproduzido com Autorização do Autor


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