A fé raciocinada, a evolução da fé (3 textos)
A) A Fé Religiosa Condição da Fé Inabalável
Sob o ponto de vista religioso, a fé é a crença nos dogmas particulares que constituem as diferentes religiões, e todas as religiões têm seus artigos de fé. Quanto à fé, ela pode ser raciocinada ou cega. A fé cega nada examina, aceita sem controle o falso como o verdadeiro, e se choca, a cada passo, com a evidência e a razão; levada ao excesso, ela produz o fanatismo. Quando a fé se baseia no erro, cedo ou tarde se desmorona; mas a que tem por base a verdade garante o futuro, porque nada tem a temer do progresso das luzes, porquanto o que é verdadeiro na sombra também o é na claridade. Cada religião pretende ter a posse exclusiva da verdade, porém, preconizar a fé cega sobre um ponto de crença é confessar sua impotência para demonstrar que está com a razão.
Diz-se vulgarmente que a fé não se receita, daí muitas pessoas afirmarem que, se não têm fé, não é por sua culpa. Sem dúvida, a fé não se receita, mas se adquire, e não há ninguém a quem seja recusado possuí-la, mesmo entre os mais refratários. Nós falamos de verdades espirituais fundamentais, e não desta ou daquela crença em particular. Não é a fé que deve ir até eles, são eles que devem ir ao encontro da fé, e se a procurarem com sinceridade, a encontrarão. Tende, pois, como certo que aqueles que dizem: Não desejamos nada melhor do que crer, mas não o podemos, o fazem com os lábios, não com o coração, visto que, ao dizerem isso, eles fecham os ouvidos. As provas, no entanto, são muitas à volta deles; por que, então, se recusam a vê-las? Em uns, é pela indiferença; em outros pelo medo de serem forçados a mudar de hábitos e, na maioria, pelo orgulho, que se recusa a reconhecer um poder superior, que os faria inclinar-se diante dele.
Entre algumas pessoas a fé, de alguma forma, parece inata; uma centelha é suficiente para desenvolvê-la. Essa facilidade em assimilar as verdades espirituais é um sinal evidente de progresso anterior; em outras, ao contrário, elas só penetram com dificuldade, sinal não menos evidente de uma natureza em atraso. As primeiras já acreditaram e compreenderam; trazem, ao renascer, a intuição do que sabiam: sua educação está feita. As segundas têm tudo a aprender: sua educação está por fazer. Ela, porém, se fará, e se não for terminada nesta existência, será em uma outra.
A resistência do incrédulo, é preciso convir, quase sempre é devida mais à maneira como lhe apresentam as coisas do que a ele mesmo. Para se ter fé necessita-se de uma base, e essa base é a compreensão perfeita daquilo em que se deve crer; para crer não basta ver, é preciso principalmente compreender. A fé cega não é mais deste século[1]; ora, é precisamente o dogma da fé cega que causa, atualmente, o maior número de incrédulos, porque ela quer se impor, porque ela exige a abdicação de uma das mais preciosas prerrogativas do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio. É contra essa fé, sobretudo, que se revolta o incrédulo, o que confirma a afirmativa de que a fé não se impõe. Não admitindo provas, ela deixa no espírito um vazio de onde nasce a dúvida. A fé raciocinada, que se apóia sobre os fatos e a lógica, não deixa nenhuma obscuridade; a pessoa crê, porque tem a certeza, e só tem a certeza porque compreendeu. Eis por que essa fé não se dobra: visto que não há fé inquebrantável senão aquela que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da humanidade.
É a esse resultado que o Espiritismo conduz, triunfando também sobre a incredulidade, todas as vezes que não encontra a oposição sistemática e interessada.
Allan Kardec
in Cap. XIX O Evangelho segundo o Espiritismo (2ª Ed CELD)
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B) Fé raciocinada
Autor: Rogério Coelho
Sem a luz da razão, desfalece a fé. (1)
Allan Kardec
Joanna de Ângelis esclarece que para legitimar-se, a fé se deve consorciar com a razão que elucubra e analisa, passando pelo crivo da argumentação lógica tudo o em que se crê.
O Espiritismo postula (2): Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.
Deve-se o declínio da influência das religiões da atualidade, com o conseqüente incremento dos despautérios morais de vária ordem, ao fato de estarem essas mesmas religiões atreladas a dogmas ancilosados que atentam contra os mais comezinhos princípios da lógica e da razão, bem como permanecem subjugadas pela avidez de conquista horizontais, puramente materialistas e pela ânsia de dominação e de poder temporal de seus líderes aferrados a ambições diametralmente opostas da verdadeira missão de consolar, instruir e regenerar Almas, fazendo-as gravitar para Deus.
Esclarece o Mestre Lionês:
Dá-se com os homens, em geral, o que se dá com os indivíduos em particular. As gerações têm sua infância, sua juventude e sua maturidade. Cada coisa tem de vir na época própria; a semente lançada à terra, fora da estação, não germina. Mas, o que a prudência manda calar momentaneamente, cedo ou tarde será descoberto, porque, chegados a certo grau de desenvolvimento, os homens procuram por si mesmos a luz viva; pesa-lhes a obscuridade. Tendo-lhes outorgado a inteligência para compreenderem e se guiarem por entre as coisas da Terra e do Céu, eles tratam de raciocinar sobre a sua fé. É então que não se deve pôr a candeia debaixo do alqueire, visto que, sem a luz da razão, desfalece a fé.
No item seguinte afirma (3):
Se pois, em sua previdente sabedoria, a Providência só gradualmente revela as verdades, é claro que as desvenda à proporção que a Humanidade se vai mostrando amadurecida para as receber. Ela as mantém de reserva e não sob o alqueire. Os homens, porém, que entram a possuí-las, quase sempre as ocultam do vulgo com o intento de o dominarem. São esses os que, verdadeiramente, colocam a luz debaixo do alqueire. É por isso que todas as religiões têm tido os seus mistérios, cujo exame proíbem. Mas, ao passo que essas religiões iam ficando para trás, a Ciência e a inteligência avançaram e romperam o véu misterioso...
Tudo o que se acha oculto será descoberto um dia e o que o homem ainda não pode compreender lhe será sucessivamente desvendado, em mundos mais adiantados, quando se houver purificado. Aqui na Terra ele ainda se encontra em pleno nevoeiro.
Diz-se que a fé se vai; e com razão, pois realmente a fé que se vai é justamente a fé cega, aquela que colide com a evidência e a razão; aquela que aceita tudo sem verificação; aquela que gera o fanatismo, quando exacerbada e levada ao excesso nos desdobramentos da ignorância.
Dá atestado de impotência de argumentação todo aquele que preconiza a fé cega sobre um ponto de crença, vez que falecem-lhe os meios de demonstrar que está com a razão.
A LEGÍTIMA ACEPÇÃO DE FÉ (4)
A fé sincera e verdadeira, é sempre calma; faculta a paciência que sabe esperar, porque, tendo o seu ponto de apoio na inteligência e na compreensão das coisas, tem a certeza de chegar ao objetivo visado. A fé vacilante, ao contrário, sente a sua própria fraqueza; quando a estimula o interesse, torna-se furibunda e julga suprir, com a violência, a força que lhe falece. A calma na luta é sempre um sinal de força e confiança; a violência, ao contrário, denota fraqueza e dúvida de si mesmo.
Cumpre não confundir a fé com a presunção. A verdadeira fé se conjuga à humildade; aquele que a possui deposita mais confiança em Deus do que em si próprio, por saber que, simples instrumento da vontade divina, nada pode sem Deus. A presunção é menos fé que orgulho, e este é sempre castigado, cedo ou tarde, pela decepção e pelos malogros que lhe são infligidos.
Continua Kardec com seu raciocínio lúcido e cristalino (2):
(...) A fé necessita de uma base, base que é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer. E para crer não basta ver; é preciso, sobretudo, compreender.
A fé cega já não é deste século, tanto assim que precisamente o dogma da fé cega é que produz hoje o maior número dos incrédulos, porque ela pretende impor-se, exigindo a abdicação de uma das mais preciosas prerrogativas do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio. É principalmente contra essa fé que se levanta o incrédulo, e dela é que se pode, com verdade, dizer que não se prescreve.
Não admitindo provas, ela deixa no espírito alguma coisa de vago, que dá nascimento à dúvida. A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa. A criatura então crê, porque tem certeza, e ninguém tem certeza senão porque compreendeu. Eis por que não se dobra.
A esse resultado conduz o Espiritismo, pelo que triunfa da incredulidade, sempre que não encontra oposição sistemática e interesseira.
Bibliografia:
1. KARDEC, Allan. O Evangelho Seg. o Espiritismo. 121.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2003, cap. XXIV, item 4.
2. Idem, ibidem, cap. XIX, item 7.
3. Idem, ibidem, cap. XXIV, item 5.
4. KARDEC, Allan. O Evangelho Seg. o Espiritismo. 121.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2003, cap. XIX, itens 3 e 4.
http://www.oconsolador.com.br/22/rogerio_coelho.html
C) A filosofia espírita da fé raciocinada
Autor: - Luiz Signates
As relações entre fé e razão desde o princípio fazem parte do debate filosófico espírita, com a criação por Allan Kardec do conceito de fé raciocinada. De um ponto de vista conceitual, estabelece-se uma contradição aparentemente insuperável, porquanto a fé se funda na convicção e a razão, na dúvida; resulta, então, que ambos se contradizem. Ora, como crer e duvidar são práticas antagônicas por definição, o conceito de "fé raciocinada", seria por isso um evidente contra-senso.
Em Kardec, esse conceito é apresentado dentro de um quadro argumentativo construído para negar uma outra noção, atribuída pelo professor lionês às religiões dogmáticas: a "fé cega". Nesse sentido, a fé raciocinada seria algo próximo de "fé fundamentada", isto é, o adjetivo referente ao raciocínio daria ao sujeito o significado de um estado, e não de um processo. Ou seja, a fé raciocinada não seria propriamente uma "fé que raciocina", e sim, uma fé que já raciocinou antes, para se constituir. Tal interpretação consegue parcialmente satisfazer o quadro lógico de separação entre fé e razão: haveria primeiro o movimento de raciocínio e, somente depois, a fé se constituiria.
Esse ponto de vista, entretanto, não é satisfatório, sob o prisma kardequiano. Ainda nas menções que faz sobre a questão da fé, o codificador publicou em "O Evangelho Segundo o Espiritismo" um axioma que se tornou famoso nos meios doutrinários espíritas: "Fé inabalável só é a que pode encarar a razão, face a face, emtodas as épocas da Humanidade". Nessa proposição, Allan Kardec nos remete a uma percepção histórica, processual, do fenômeno da crença, delimitando, com o rigor que lhe era próprio, a característica especial e profundamente inovadora da fé espírita.
Nesse contexto, a féraciocinada qualidade que a tornaria inabalável seria não apenas aquela que se constituísse por um movimento de decisão racional, mas, também, a que se mantivesse em regime de racionalidade contínua, inclusa essa exigência no exercício da própria fé. A conciliação necessária, nesse caso, entre os conceitos de fé e razão, seria feita pela mudança de um raciocínio lógico para um raciocínio dialético: os contrários, ao invés de se excluírem, se complementam, se conjugam, na explicação da realidade.
Dentro desse modo de pensar, a fé espírita forma um par dialético inseparável com a razão espírita. Tal idéia significa que a crença espírita é basicamente uma fé que admite dúvida e com ela convive, durante todo o tempo. Trata-se, pois, de uma fé aberta, dialogal, disposta a modificar as próprias opiniões ou o objeto de sua manifestação como crença, desde que satisfeitas as condições do livre exercício da razão. Em contrapartida, a razão espírita constitui uma dúvida que se baseia na fé, capaz de fazer emergir as desconfianças naturais da racionalidade sem uma pretensão cética ou cientificista, e que, sobretudo, está disposta a admitir a crença e a confiança naqueles conteúdos sobre os quais a razão aindanão assumiu uma postura de conhecimento e verificação. Tal composição resulta no que Herculano Pires denominou, muito apropriadamente, "fideísmo crítico".
O uso da razão é a admissão da dúvida, a qual, no Espiritismo, se funda no princípio filosófico da imperfeição espiritual (temos preferido denominá-la incompletude, para retirar o sentido pejorativo do termo "imperfeição", como algo "errado, estragado, com defeito"), o que faz da jornada espiritual a contínua e necessária possibilidade da mudança. Por esta via, o Espiritismo funda um novo iluminismo, cuja formulação acredita na racionalidade como fundamento da fé humana e, por tal razão, confia no aperfeiçoamento das possibilidades da razão como geratriz do aprimoramento da fé.
Feitas tais considerações, de ordem filosófica, convém refletir pragmaticamente. Nem todos os espíritas na atualidade compreendem o que significa essa dimensão do conceito de fé raciocinada. Não raro, imaginam que raciocinar seja o mesmo que racionalizar, isto é, referir-se à razão como pretexto para justificar o dogma, o que transforma o argumento racional em argumento ideológico (no sentido negativo, como falsa concepção da realidade, apoiada somente em critérios de identidade religiosa), atitude que de modo algum pode ser justificada na proposta de Kardec. Fé raciocinada, portanto, não é o mesmo que fé racionalizada (até porque todas as formas de fé podem ser enquadradas neste último tipo).
Dentre as diversas concepções de racionalidade válidas em filosofia, acreditamos que a noção de "razão comunicativa" ou "razão consensual", do filósofo alemão Jürgen Habermas, é a que melhor se adequa ao conceito de fé raciocinada, em Kardec. Para aquele pensador, há racionalidade sempre que houver diálogo onde se instaurem consensos entre os interlocutores, sendo que a verificação prática do consenso seria a própria demonstração de que houve racionalidade. Em outras palavras: razão é o diálogo que dá certo.
Em Kardec, a fé raciocinada é a fé que permanece em constante contato com a razão, isto é, busca sempre um saber mais amplo, argumenta e se questiona. Para isso, a fé espírita há de ser permanentemente reconstruída no diálogo com os diversos saberes, especialmente na interação entre o saber humano, de vertente científica, filosófica ou experiencial, e o saber espiritual, originado da interlocução mediúnica. Eis, portanto, sob formulação espírita, a razão comunicativa, um movimento de construção da crença erigido sobre o diálogo e, por isso, capaz de "enfrentar a razão, face a face, em qualquer época da Humanidade".
Os espíritas, por isso, não podem abandonar em tempo algum a possibilidade do diálogo, não apenas com os espíritos, a partir dos quais o conhecimento assume a forma de "revelação", em definição kardequiana, mas também com os variados saberes humanos, especialmente o filosófico e o científico. A fé espírita há de ser uma fé em constante atualização, uma fé sempre renovada, sempre reconstruída. Ou recairá lamentavelmente num novo tipo de fé cega: a que se contenta em apenas fingir que vê.