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quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Um relato, um filme, um romance



KLEBER HALFELD


Reformador
Revista de Espiritismo Cristão
Ano 126/ Fevereiro, 2008/N.º 2.147


A Igreja Católica estabeleceu uma máxima para seus adeptos: fora da igreja não há salvação. O Espiritismo adverte sobre um princípio mais coerente: fora da caridade não há salvação.
Esta segunda afirmativa trouxe-me à lembrança curiosa página mediúnica que li há muitos anos, a qual tecia comentários sobre a chamada mentira caridosa, ou seja, aquela que usamos em situação delicada, imprevista, não revelando, de nossa parte, uma verdade, por imaginarmos nosso próximo despreparado para uma angustiante realidade.
Um amigo, muito estimado, narrou-me o seguinte fato: Em um quarto de clínica médica estavam internados três idosos paraplégicos. De duas camas, os pacientes somente podiam vislumbrar as paredes nuas do quarto, enquanto o da terceira tinha o privilégio de lhes transmitir o que “enxergava” através de uma janela à sua frente.
– Estou vendo a praça com movimento bem grande de crianças que brincam com uma bola e um cachorro. O céu está todo azul. Há muitos carros na rua. A carrocinha do pipoqueiro tem hoje uma freguesia boa.
No dia seguinte voltava a informar:
– Bem, hoje o tempo prenuncia chuva. A praça está praticamente vazia. As pessoas movimentam-se a passos rápidos e a rua está deserta.
E, assim, todos os dias, variavam as informações. Umas bem detalhadas outras mais sintéticas.
Aconteceu, todavia, o inesperado: o informante morreu vítima de um ataque cardíaco.
Imediatamente, outro paciente solicitou da direção da clínica, licença para ocupar a cama do falecido, no que foi atendido. Desejava igualmente ver com os próprios olhos o que se passava além daquela janela.
Grande, contudo, foi sua surpresa: através da janela pôde tão--somente visualizar um muro pintado de branco, o qual cercava parte da clínica, conforme foi informado por um funcionário da instituição.
Prendia-se a descrição diária do antigo companheiro de quarto à necessidade que ele tinha de distrair, um pouco que fosse, os outros dois companheiros. Acreditava ser de sua parte um gesto fraterno, utilizando-se de inocentes e caridosas mentiras...
Quem tiver ensejo de assistir A vida é bela (La vita è bella) com a participação de Roberto Benigni – mas que assume igualmente o papel de escritor e diretor –, encantar-se-á com um dos mais belos e comoventes filmes lançados no mercado cinematográfico, contrapondo-se a esta avalancha de películas de baixo padrão produzidas ultimamente.
O filme é passado durante a Segunda Guerra Mundial e conta a história triste, e ao mesmo tempo hilariante, de um pai que é aprisionado com seu pequeno filho em um campo de concentração nazista.
Para tirar a impressão negativa de seu filho a respeito do lugar, esforça-se no sentido de fazê-lo acreditar que estão em um setor de atividades esportivas.
Haveria um campeonato e quem se classificasse em primeiro lugar ganharia um tanque de guerra de verdade.
Com genial habilidade, ele vai convencendo seu pupilo, criando situações tão pitorescas quão emotivas, e, no final, o filme mostrará uma cena realmente inesperada.
Vale ressaltar que esse trabalho de Benigni ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, tendo concorrido à época com a produção brasileira “Central do Brasil”, a qual contou com a participação de Fernanda Montenegro.
A análise de A vida é bela – cuja exibição em nosso país encantou todas as platéias – mostrou-nos uma curiosa e bem arquitetada mentira de um pai para com seu amado filho, cheio este de encantadora pureza de coração!
Não podemos, em vendo o filme, relevar a atitude desse pai, admitindo que sua engendrada história possa ser catalogada com o adjetivo caridosa?
No romance Cinqüenta Anos Depois, ditado pelo Espírito Emmanuel ao querido médium Francisco Cândido Xavier, o autor, em sua página inicial – “Carta ao Leitor”, p. 9 –, escreve:

[...] Ali, Públio Lentulus se movimenta num acervo de farraparias morais e deslumbramentos transitórios; aqui, entretanto, como escravo Nestório, observa ele uma alma. Refiro-me a Célia, figura central das páginas desta história, cujo coração, amoroso e sábio, entendeu e aplicou todas as lições do Divino Mestre, no transcurso doloroso de sua vida.Na seqüência dos fatos, dentro da narrativa, seguirás os seus passos de menina e de moça, como se observasses um anjo pairando acima de todas as contingências da Terra Santa pelas virtudes e pelos atos de sua existência edificante, seu Espírito era bem o lírio nascido do lodo das paixões do mundo, para perfumar a noite da vida terrestre, com os olores suaves das mais divinas esperanças do Céu.”.

Quem já teve a oportunidade de ler Cinqüenta Anos Depois, com certeza percebeu o sentido verdadeiramente emotivo das expressões de Emmanuel, descrevendo, no início do livro editado pela Federação Espírita Brasileira o perfil da personagem central, Célia, a filha de Helvídio Lucius e Alba Lucínia. Advinhará a ignomínia de um sinistro plano urdido por Cláudia Sabina com a criada Hatéria; a decisão cristã de Célia, objetivando conservar a inocência, a honra de sua mãe, e assumindo, para tanto, a responsabilidade de um recém-nascido que ela, na verdade, não gerara e que, por outro lado, era enganosamente atribuído à sua genitora; a expulsão da casa de seus pais, uma sacrificante viagem empreendida até Alexandria, no Egito, e finalmente, sua desencarnação – após longo e exaustivo trabalho em favor do sofredor –,em local a que Emmanuel chamou de “Horto de Célia”.
Após todas estas anotações, detenho-me em dois itens da referida obra, ditada pelo antigo senador romano Públio Lentulus:
Item número 1: No capítulo II da segunda parte – “Calúnia e Sacrifício”– observamos o desprendimento, a coragem cristã de Célia, assumindo uma responsabilidade que não lhe pertencia:

– Sim, meu pai... minha mãe...pesa-me a confissão de minha falta, mas esta criança é meu filho...

Item número 2: Na cidade de Minturnes – que posteriormente, segundo palavras de Emmanuel, passaria a denominar-se Trajetta –, vamos identificar o encontro de Célia com um idoso cristão de nome Marinho, que fraternalmente a ampara sob seu teto, após a saída da residência dos pais, ajudando-a, na viagem que encetaria para a cidade egípcia de Alexandria, sugerindo-lhe, todavia, o uso de trajes masculinos, exatamente para defendê-la e livrá-la dos perigos existentes nas estradas, conforme confissão feita de forma franca, incisiva:

Velho conhecedor dos nossos tempos de decadência e desmantelos morais, sei que, ante a tua juventude, quase todos os homens moços, cheios de materialidade, se curvarão em ignominiosas propostas. [...]
....................................................
Lembra-te de que, ainda agora, eu te falei do meu antigo projeto de levar a filha ao Egito, em trajes masculinos, de modo a arrebatá-la deste antro de corrupção e impenitência. [...]
(Op. cit., cap. IV.)

E já no mosteiro de Alexandria, na presença do superior Aufídio Prisco, mais conhecido por “pai Epifânio”, tomamos conhecimento da entrevista entre Célia e Filipe, um funcionário do mosteiro.
Desta entrevista ressaltamos somente uma das perguntas feitas pelo entrevistador:
“– Seu nome?”
E a reposta de Célia Lucius:
“– O mesmo de meu pai.” (Neste caso referia-se a entrevistada não ao seu genitor, Helvídio Lucius, mas ao seu protetor de Minturnes que a acolhera.)
Após o interrogatório, é Célia aceita oficialmente na organização com o nome de Irmão Marinho.
Dos dois itens, o destaque para a espiritualidade de Célia: na defesa de sua genitora; na troca de nome, a fim de assegurar trabalho para si no mosteiro, e preservar a segurança da criança que estava consigo.
Poderão muitos levantar errôneo julgamento em recordando a figura dessa jovem cristã. Acredito sinceramente não proceder semelhante julgamento, alegando-se omissão da verdade.
Não se deseja, no caso, olvidar a sentença do Mestre de que conheceremos a verdade e a verdade nos libertará. Conforme ressaltamos, há que admitir as situações sutis, delicadas, as quais não comportam franqueza frontal, dura, incisiva, descaridosa, enfim.
Se, na omissão da verdade, emerge a intenção caridosa para o nosso próximo, convenhamos que, segundo o apóstolo Pedro (I, 4:7), “o amor cobre a multidão de pecados.”

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